sábado, março 18, 2006

A Economia como Suicídio

“Os economistas…propõem associar o capital e o trabalho. Sabem o que isso significa? Por pouco que se aprofunde a doutrina, em breve nos apercebemos que nela se trata de absorver a propriedade, não por uma comunidade, mas por uma comandita geral e indissolúvel. De modo que a situação do proprietário já não diferiria da do operário, a não ser como conclusão de um estudo grosseiro do tema…”
Proudhon 2ª Memória sobre a Propriedade


O crescimento exponencial da economia moderna acarreta como consequência necessária, num espaço de tempo historicamente curto, uma catástrofe dos fundamentos naturais da vida. O consumo voraz de recursos e a emissão desenfreada de poluentes, põem em xeque a sobrevivência da humanidade.
Em termos empíricos, o resultado é inequívoco e só pode ser contestado por ignorantes. As condições elementares da vida, como a água, o ar e a terra, estão expostas a um crescente processo de envenenamento. A camada protectora de ozono na atmosfera é corroída. Para os homens o banho de sol torna-se perigoso pelos cancros que pode provocar. A água potável, além de sofrer contaminação, está cada vez mais escassa. Os desertos avançam dia a dia, e há prognósticos de que a guerra do século vinte e um terá como motivação o controle de mananciais hídricos.
Com uma rapidez inquietante, são extintas espécies da flora e da fauna. As florestas tropicais, a maior reserva natural da Terra, desaparecem num piscar de olhos. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial até hoje, a destruição foi maior do que em toda a história da humanidade. Com a ingestão excessiva de ingredientes tóxicos, o sistema imunológico humano ameaça entrar em colapso (sobretudo nas crianças). Os médicos profetizam o surgimento de novas epidemias, contra às quais não haverá remédio.
A lista das destruições e das catástrofes iminentes poderia ser prolongada infinitamente. A própria beleza do mundo desaparece. A economia de mercado desfigura o semblante da natureza. Tudo indica que a economia trabalha com mais eficiência para transformar todo o planeta num fedorento depósito de lixo e finalmente extinguir a vida humana.
O problema do "meio ambiente" tornou-se em todos os países objecto de debates políticos. Mas tais debates não são dignos de confiança. Os políticos, como mentirosos profissionais, exortam a humanidade a uma conversão e prodigalizam adágios morais como a indústria prodigaliza lixo. Gastam milhões de litros de querosene para promover reuniões nas quais nada é decidido. Em 1992, reuniram-se no Rio de Janeiro eminências políticas e chefes de Estado de todo o mundo, a fim de deliberar sobre a protecção da natureza, do meio ambiente, da atmosfera e da água. Armou-se um grande aparato para a perfumaria política. Mas o resultado final foi equivalente a zero.
Os próprios homens de bem e dignitários do Clube de Roma e iniciativas afins clamam a plenos pulmões a necessidade de uma "revolução global" para salvar a natureza e a humanidade. Mas desde quando as revoluções são feitas por dignitários e homens de bem?
Na verdade, as propostas do Clube de Roma são tudo menos revolucionárias. Como todos os valorosos burgueses e cristãos, esses honoráveis cientistas querem conciliar o lobo e o cordeiro.
"Crescimento qualitativo" e "desenvolvimento sustentado" devem pôr em consonância dinheiro e natureza sobre o pano de fundo de um mercado global pautado pela "eficiência económica" e pelo "desafio ecológico". Será esse um objectivo realista ou uma tentativa ingénua de calcular a quadratura do círculo?
A raiz da economia moderna é o dinheiro, a moeda. Mas esta é uma abstracção social, pois abstrai de todo conteúdo sensível e qualitativos: Mil euros são uma grandeza abstracta, puramente quantitativa. Já o filósofo Hegel sabia que a moeda representa trabalho-social; mas trabalho em forma abstracta, purificado da sua determinação concreta.
Na relação com a moeda, o trabalho aparece como puro consumo de energia humana abstracta. Hegel falava assim de "trabalho abstracto". Mas Hegel disse também: "Fazer valer as abstracções no mundo real significa destruir a realidade". À medida que a moeda se coloca a meio caminho entre homem e natureza, esta última é destruída. A moeda, portanto, também é a raiz da força destrutiva da economia moderna.
Não há dúvida de que a moeda é muito mais antiga do que a sociedade industrial moderna. Mas o seu papel foi apenas marginal antes do século XVIII (e, em muitos países, até ao século XX). A grande maioria dos alimentos era produzida de forma auto-suficiente, sem troca de mercadorias.
Enquanto durou a produção mercantil, a moeda restringiu-se ao papel de intermediária: figurava entre duas mercadorias qualitativamente diversas como simples meio de troca. A economia moderna, por sua vez, não é fruto apenas do progresso técnico, como nos querem fazer crer. Muito mais decisiva foi a transformação da moeda, que de um meio passou a ser um fim em si mesma.
Qual o significado disso? Na economia moderna, inverteu-se a relação entre mercadoria e moeda. Não é mais a moeda que figura entre duas mercadorias qualitativamente diversas, mas justamente o contrário: a mercadoria figura no meio de dois modos de manifestação da mesma forma abstracta chamada "moeda". Essa operação só faz sentido, obviamente, se ao final resultar uma soma monetária maior que no início. A moeda tornou-se um "capital produtivo" que se multiplica. Ao contrário dos antigos produtores não comerciais, o objectivo não é a reprodução material da própria vida, mas o acumular de ganhos em forma de moeda.
Somente por meio dessa nova lógica económica pôde nascer um mercado totalizado, no qual empresários voltados ao lucro concorrem entre si e no qual todos dependem de sua capacidade de "ganhar dinheiro". A moeda agora está presa a um circuito cibernético fechado sobre si mesmo. Ela se torna independente no seu movimento absurdo como fim último e começa a levar uma vida fantasmagórica.
Assim, o historiador Karl Polanyi chamou a economia de mercado moderna de uma "economia autonomizada" face aos contextos da vida. O próprio socialismo de Estados do Leste e do Sul, com seus "mercados planificados", não foi mais do que um derivado histórico da mesma lógica económica.
Não se pode negar que essa economia historicamente nova acelerou de modo vertiginoso o desenvolvimento das forças produtivas. Mas todos os progressos científicos e tecnológicos têm de submeter-se à forma monetária e são por ela impregnados.
Isso significa que o conteúdo sensível da produção é submetido a um processo económico puramente quantitativo com uma aparência de lei física. A moeda trabalha como um robô social que não é capaz de diferenciar entre saudável e nocivo, feio e bonito, moral e amoral.
Sob a pressão da concorrência no mercado, o empresário é obrigado a obedecer, em todas as decisões, à racionalidade monetária. Quando se fala de "redução dos custos" e "eficiência", o que está em jogo é apenas o "interesse" abstracto da moeda. Como um neurótico que, possuído por uma ideia fixa, toma sempre o caminho mais curto entre dois pontos, sem levar em conta o prazer ou a dor, assim também o cálculo empresarial exige a abstracta "redução dos custos", sem levar em consideração o conteúdo sensível e as consequências naturais.
Embora os empresários falem com insistência de uma melhoria na qualidade, isso se refere sempre ao design do produto isolado, mas nunca ao mundo exterior à empresa. O resultado são "belos" produtos num "meio ambiente" degradado. O próprio conteúdo do produto é muitas vezes mera fachada, a começar pelos alimentos. A indústria alimentícia é ciosa em os compradores com uma suave coerção, de modo a modificar-lhes o olfacto e o paladar.
No interesse da "eficiência" económica e da "simplificação" lucrativa para grandes mercados, já desapareceram em todo mundo milhares de tipos de frutas, legumes e carnes. Nos laboratórios, são cultivados alimentos que podem ser embalados com facilidade e não apodrecem, mas cujo "sabor" é injectado quimicamente. A força da oferta oprime toda crítica da procura.
À parte a crescente destruição do prazer sensível e estético, a "redução dos custos" é na verdade algo externo dos custos face à natureza e ao futuro. Do ponto de vista empresarial, a natureza e o futuro são espaços economicamente vazios para além do cálculo de custos, nos quais os "excrementos da produção" (Marx) desaparecem sem deixar vestígios.
Isso não se aplica apenas à emissão de poluentes pela produção mas também ao transporte. Um mísero frango congelado nos EUA viaja em média 3.000 milhas antes de ser consumido. Se a economia empresarial -em busca de menores custos, menores taxas de câmbio, salários mais baixos e outras vantagens - aufere ganhos no plano monetário, no plano dos recursos naturais ela promove uma orgia de desperdício.
O crescimento exponencial denunciado pelo Clube de Roma também não é um erro casual, mas resultado necessário do sistema de mercado. A moeda, fechada num circuito cibernético, exige o aumento constante da produção. A concorrência exige o aumento permanente da produtividade.
Como desse modo o produto isolado representa cada vez menos moeda, a produção tem que crescer não linearmente, mas em progressão geométrica. E como nessa dinâmica os investimentos seguem os sinais abstractos da rentabilidade, a opção de um "desenvolvimento sustentado" -qualitativamente definido dentro da economia de mercado - é uma ilusão. A produção de bens qualitativamente mais significativos ou mesmo de primeira necessidade é automaticamente posta de lado quando deixa de ser rentável em termos monetários; por sua vez, o capital é rápido ao apoiar projectos destrutivos, se estes acenam com lucros generosos.
Dessa maneira, a vida social assume um carácter auto-destrutivo. Se é fato que o aumento da produtividade expande o desemprego, é preciso que os mais ricos consumam com uma avidez cada vez maior para permitir o funcionamento do sistema. Por meio do "desgaste programado", a vida dos produtos é encurtada, e simultaneamente a indústria inventa novas necessidades grotescas e pueris. De um lado, crianças que pedem esmola; de ouro, loucos que se consomem até a morte.
A indústria moderna matou mais crianças que o rei Herodes, mas sempre pôde lavar as mãos e remeter-se às taciturnas leis monetárias. Tampouco os assalariados questionam-se sobre o produto de seu trabalho, já que se encontram sob total dependência de seus empregos.
O sistema monetário é responsável por uma esquizofrenia estrutural: todos sabem que a sua acção é destrutiva, mas todos mantêm os olhos vidrados nos rendimentos, assim como o coelho na serpente. Por que a opinião pública mostra-se tão indignada com os voluntários suicidas do Hamas, se ela aceita de bom grado o programa suicida global da economia de mercado?
É um tanto crédulo nutrir esperanças de que a política acorrente o lobo do mercado. Um imposto ecológico eficaz é improvável, pois o Estado é nacional, mas a concorrência, internacional. Países com pequeno importe de capital só conseguem concorrer sob as condições da globalização por meio de dumpings ecológicos.
Eis por que o moralismo económico de países ricos em relação ao Terceiro Mundo é uma hipocrisia. O problema reside na própria economia moderna. A política é sempre cúmplice do dinheiro, já que não possui renda própria. Mesmo o poder precisa ser financiado. Eis por que as aparentes potências dependem do crescimento exponencial da "economia autonomizada".
Ao que tudo indica, há somente uma única solução radical: a humanidade deve libertar-se do domínio monetário que se tornou independente. Com certeza, um retorno à sociedade agrária pré-moderna não é possível nem desejável. Mas talvez outras formas de cooperação sejam viáveis. Podem as organizações sem fins lucrativos tomar o lugar da economia empresarial? Os economistas dizem que isso é utópico e pouco realista. Eles temem pela depreciação de sua absurda qualificação.
Ora, pois então a própria sobrevivência da humanidade é utópica e pouco realista. Há somente um consolo: tampouco os mandarins plutocratas serão poupados da destruição da natureza. Já posso imaginar que, num futuro próximo, os últimos ricos sentados na varanda das suas luxuosas casas de campo, com máscaras de gás cobrindo os rostos diplomáticos, sorvendo de garrafas folheadas a ouro, com auxílio de canudos, as últimas gotas de água potável.


“A ideia fundamental, a categoria dominante da economia política, é o valor.
O valor atinge a sua fixação positiva através de uma série de oscilações entre a oferta e a procura...
O valor apresenta-se, sucessivamente, sob três aspectos: valor útil, valor permutável e valor sintético ou valor social.
Em toda a parte em que o trabalho não foi sociabilizado, isto é, onde o valor não se determina sinteticamente, há perturbação e deslealdade nas trocas, guerra de astúcias e de emboscadas, obstáculos à produção, à circulação e ao consumo; trabalho improdutivo, ausência de garantias, espoliação, falta de solidariedade, indigência e luxo; mas, ao mesmo tempo, esforço do espírito social para conquistar a justiça e tendência constante para a associação e para a ordem. A economia política não é outra coisa senão a história desta grande luta.


Proudhon Sistema das Contradições Económicas


http://obeco.planetaclix.pt/rkurz.htm

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