domingo, julho 02, 2006

Da redução das cabeças à alteração dos corpos

O homem modificado pela economia de mercado


O mercado está em vias de fabricar, sob os nossos olhos, um novo “homem novo”. Destruindo todas as formas de lei que representariam um constrangimento para a mercadoria, a desregulação neoliberal produz efeitos em todas as áreas, e não apenas no campo económico. O próprio psiquismo humano está a ser perturbado, abalado. Multiplicam­‑se as depressões, os distúrbios da personalidade, os suicídios. A tal ponto que o mercado já não quer o ser humano tal como ele é. E socorrendo­‑se da clonagem e da engenharia genética, exige doravante, claramente, a transformação biológica da humanidade.
No meu livro L’art de réduire les têtes [1] tentei evidenciar a profunda reconfiguração das mentes que o mercado está a levar a cabo. A demonstração é relativamente simples: o mercado rejeita toda e qualquer consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental, cultural, ambiental... ) que possa constituir um entrave à livre circulação mundial da mercadoria. É por isso que o novo capitalismo procura desmantelar todos os valores simbólicos em benefício do valor monetário da mercadoria, tido como neutro. E visto agora existir apenas um conjunto de produtos que se trocam estritamente com base no seu valor mercantil, os homens têm de livrar­‑se de todas essas sobrecargas culturais e simbólicas que antes garantiam as suas trocas.
Um bom exemplo de uma tal dessimbolização, resultante do expansionismo do reino da mercadoria, encontra­‑se nas notas do euro, de onde desapareceram as efígies das grandes figuras da cultura, as quais, de Pasteur a Pascal, de Descartes a Delacroix, ainda há pouco relacionavam as trocas monetárias com os valores culturais património dos Estados-nação. Nas notas do euro há agora apenas pontes, portas e janelas, tudo coisas que exaltam a fluidez da descultura, sendo os homens solicitados a inclinar-se ante o jogo da circulação infinita da mercadoria. Podemos pois dizer que a lei do mercado consiste em destruir todas as formas de lei que representem um constrangimento relativo à mercadoria.
Ao abolir todo o valor comum, o mercado está a fabricar um novo “homem novo”, destituído da sua faculdade de julgar (sem outro princípio que não seja o lucro máximo), levado a usufruir sem desejar (a única redenção reside na mercadoria), formado para todas as flutuações de identidade (deixou de haver sujeito, há apenas subjectivações temporárias, sempre precárias) e aberto a todas ramificações mercantis. Estamos assim perante um aspecto muito peculiar da desregulação neoliberal, o qual, desgraçadamente, ainda não é bem compreendido, embora já produza efeitos consideráveis em todos os âmbitos, em particular no psiquismo humano. De resto, alguns psiquiatras e psicanalistas estão desde já a proceder ao inventário dos novos sintomas decorrentes desta desregulação, tais como a depressão, dependências diversas, perturbações narcísicas, o alargamento da perversão, etc.
Esta desregulação de um novo tipo suscita grandes confusões nos debates actuais. Tem aliás a acompanhá-la um certo perfume libertário, baseado na proclamação da autonomia de cada qual e numa expansão da tolerância em todos os campos sociais (entre os quais o dos costumes), o que tende a fazer crer que estamos a viver um intenso período de libertação. Na medida em que o antigo patriarcado é extremamente depreciado, pensa­‑se que está em marcha uma revolução sem precedentes... esquecendo que foi o próprio capitalismo que impôs esta “revolução”, visando favorecer a penetração da mercadoria nos domínios onde ela ainda não reinava – nos costumes e na cultura.
Karl Marx não se enganou no respeitante a esta feição “revolucionária” do capitalismo: «A burguesia não pode existir sem convulsionar constantemente os instrumentos de produção, e portanto as relações de produção, e portanto as condições sociais no seu todo. Ao invés disso, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores consistia em conservarem inalterado o antigo modo de produção. O que distingue a época burguesa de todas as anteriores é a incessante convulsão verificada na produção, o abalo contínuo de todas as instituições sociais, em suma, a permanência da instabilidade e do movimento. Dissolvem-se assim todas as relações sociais imobilizadas na ferrugem, com o seu cortejo de ideias e opiniões aceites e veneradas; e aquelas que as substituem envelhecem antes mesmo de se fossilizarem. Volatiliza-se tudo o que era sólido e estava bem assente, é profanado tudo o que era sagrado, acabando os homens por se verem obrigados a encarar com os olhos do desengano o lugar que têm na existência, bem como as suas mútuas relações» [2]. Uma tal capacidade de transformar as relações sociais foi levada ao cúmulo pelo presente estado do capitalismo, por vezes chamado, a justo título, “anarco­‑capitalismo”.
Esta convulsão tem funcionado tão bem que alguns foram levados a reter apenas, nesta nova forma do capitalismo, a sua feição “libertária”, “jovem” e “na moda”, entusiasmando­‑se facilmente com a revolução dos costumes que ela introduziu. A confusão é de tal ordem que chegam a julgar-se muito revolucionários os que se limitam a ir atrás desta desregulação cultural e simbólica – tenho aqui em mente esse sector da esquerda na moda que se entusiasma por todas as causas do último grito. Ora, é isso exactamente o que quer o anarco­‑capitalismo, que gosta, senão da revolução, pelo menos de todas as formas de desregulação cultural e simbólicas. Todos os anúncios da publicidade o evidenciam.
Segundo parece, as populações pressentem os potenciais grandes perigos que a civilização corre perante semelhante desregulação simbólica. Mas o Mercado pode recuperar em seu proveito tudo e mais alguma coisa, vendo-se já a irromper uma quantidade de grupos que gabam e vendem morais de pacotilha. Ora, seria um erro crucial deixar o debate respeitante aos valores entregue aos conservadores, quer estes sejam antigos ou “neo”. Com efeito, se descorarmos este terreno, ele será ocupado por George W. Bush, pelos tele­‑evangelistas e seus sequazes puritanos, como acontece nos Estados Unidos, ou por populismos fascizantes, como na Europa. É pois urgente empreender uma nova reflexão sobre os valores, sobre o sentido da vida em sociedade e sobre o bem comum, tendo em vista populações confusamente alarmadas com os danos morais resultantes duma expansão ilimitada do reino da mercadoria. Uma coisa é certa: se este terreno não for investido, as populações sentir­‑se­‑ão tentadas a sucumbir aos que o ocupam de forma tão ruidosa como indevida.

QUANDO A CRIATURA INTERFERE NA SUA CRIAÇÃO

Muito nos equivocaríamos, porém, se restringíssemos o debate a estes aspectos culturais. Torna­‑se manifesto que a reconfiguração das mentes é apenas a primeira fase dum mecanismo de maior amplitude. Em poucas palavras, a “redução das cabeças” e a dessimbolização não passam do prelúdio a uma outra profunda redefinição do homem, que desta feita se aplicará, já não só à sua mente, mas também ao seu corpo.
Uma tal dessimbolização do mundo surge num momento decisivo da aventura humana; com efeito, é a primeira vez na história dos organismos vivos que uma criatura consegue ler a escrita de que é expressão. Ao atingir­‑se este ponto, torna-se possível um acontecimento singular: o momento em que a criatura vai poder retornar à criação para ela própria se reconstruir, o momento em que a criatura vai interferir na sua criação e afirmar­‑se como seu próprio criador – surgindo assim o momento inconcebível em que uma espécie poderá intervir no seu próprio devir, substituindo-se às leis naturais da evolução.
É como se a recomendação humanista feita no Renascimento por um dos seus grandes pensadores, Pico della Mirandola, tivesse sido ouvida para além de todos os limites. Opondo-se às antigas formas de dominação absoluta do divino, Pico queria introduzir uma parte de livre arbítrio humano, chamando o homem a «esculpir a sua própria estátua» [3]. O apelo foi ouvido por toda a filosofia ulterior, podendo aliás considerar­‑se esta última como um prolongado desenvolvimento do tema do livre arbítrio humano, da construção do cogito cartesiano ao tema nietzscheano da morte de Deus, passando pelo ideal crítico do Iluminismo.
Ora, o homem actual encontra-se em vias de ultrapassar esse ideal; se ele de facto está a «esculpir a sua própria estátua», esta poderá ser uma estátua viva, chamada a substituir o próprio homem. Notemos, de passagem, que semelhante desígnio de redefinição das bases materiais da humanidade implicaria o fim da filosofia. Com efeito, essa realização pressuporia a irremediável transformação de um empreendimento, incessantemente repetido desde a Antiguidade, de reforma do espírito (pela ascese, pela busca de autonomia, pela refundação do entendimento), num desígnio puramente tecnicista de modificação do corpo. Mas se for para perder a mente, para que servirá obter um corpo novo?
Vale a pena levantar esta questão, visto existir desde já um difuso programa de fabricação de uma “pós­‑humanidade”. Este programa, dissimulado, não é objecto de qualquer publicidade. Isto porque não convém apavorar os homens; o que convém, acima de tudo, é eles não compreenderem que são levados a trabalhar em prol da abolição da humanidade – ou seja, em prol do seu próprio desaparecimento. O capitalismo investiu de tal forma o mundo do vivo, com o objectivo de nele desenvolver novos espaços para a mercadoria, que algumas das possíveis consequências que isso poderá ter na própria humanidade acabaram por atravessar o muro do silêncio. Francis Fukuyama, o arauto do neoliberalismo, que proclamou, após a queda do Muro de Berlim, o início do «fim da História» graças ao advento generalizado das democracias neoliberais, teve de se corrigir, admitindo que o triunfo do mercado não era o último episódio da história humana, devendo seguir­‑se­‑lhe um outro: a transformação biológica da humanidade [4]. Mas o facto de ter aberto os olhos só lhe permitiu cometer um novo erro de apreciação.
Pretende Fukuyama que o neoliberalismo saberá preservar-nos dessa engrenagem fatal – quando o neoliberalismo, precisamente por ser aquilo que é, nos leva para esse rumo em linha recta. Com efeito, sustenta este autor que a democracia de mercado seria um estado perfeito se não tivesse a ameaçá­‑la o desenvolvimento de certas técnicas: «De facto, uma técnica bastante poderosa para remodelar aquilo que nós somos poderá ter consequências potencialmente nefastas para a democracia liberal» [5]. Deixando de haver seres humanos, temos de convir que a democracia corre o risco de funcionar em vão. Ora, para se evitar semelhante perigo, bastaria, segundo Fukuyama, que «os países regulassem politicamente o desenvolvimento e a utilização da técnica». Trata-se duma piedosa intenção, que não põe a mão na massa e lhe permite silenciar o essencial: é o mercado que mantém o desenvolvimento sem fim das tecnociências, as quais, não reguladas, nos arrastam em linha recta para o abandono da humanidade.

De resto, a associação entre o mercado e as tecnociências é óbvia: visto o mercado implicar o fim de toda e qualquer forma de inibição simbólica (ou seja, o fim da referência a qualquer valor transcendental ou moral em benefício exclusivo do valor mercantil), a manter-se esta lógica nada poderá impedir que o homem se liberte de qualquer ideia que pretenda conservá-lo no seu lugar nem que ele saia da sua condição ancestral logo que disponha de meios para isso. Por conseguinte, não é apenas a ciência, como amiúde se diz, que poderá tornar possível a realização desse programa, mas sim a ciência juntamente com o efeito deletério exercido pelo mercado nos valores transcendentais. Temos pois de fazer a seguinte pergunta: haverá nas nossas democracias pós­‑modernas, em que se pode dizer tudo, uma instância política para decidir se queremos ou não semelhante mutação? De modo nenhum.
Ora, a falta dessa instância tem muito peso, vendo-se aonde pode levar o programa de fabricação de uma pós­‑humanidade: directamente a uma era de produção de indivíduos ditos superiores que não foram gerados. E de indivíduos inferiores destinados às tarefas subalternas. A existência, já banalizada, de organismos geneticamente modificados, deveria ser motivo de alerta; a curto prazo, poderão começar a fabricar-se, por clonagem e modificação genética, novas variantes humanas. Sendo até verosímil que já estejam a ser realizadas experiências nesse sentido, ou que o venham a ser a breve trecho.
Quando chegar esse dia, teremos passado da pós­‑modernidade, época desorientada no desmoronamento dos ídolos, à pós­‑história. Ninguém está em condições de vaticinar o que isso venha a ser, mas o que isso deixará de ser podemos sem dúvida dizê­‑lo. Tal coisa significa o desfecho de cinco grandes topoi da humanidade: o fim da humanidade comum, o fim da usual fatalidade da morte, o fim da individuação, o fim do entendimento (problemático) entre os sexos e a desordem na sucessão das gerações.
O perigo que ameaça a espécie humana não é unicamente o perigo do eugenismo. O que a curto prazo corre perigo é também, muito simplesmente, a conservação e perpetuação da própria espécie, conservação que não procede de si mesma, passando por um quadro simbólico e cultural. Isto explica-se pelo facto, reconhecido por uma parte da investigação paleoantropológica, de o homem ser concebível como um ser de nascimento prematuro, incapaz de atingir o seu desenvolvimento germinal completo e apesar disso capaz de se reproduzir e de transmitir os seus caracteres de juvenilidade, normalmente transitórios nos outros animais. A este respeito, fala-se da neotenia do homem [6], a qual implica que este animal, inacabado, diferentemente dos outros animais, tem de aperfeiçoar-se fora da primeira natureza, ou seja, numa segunda natureza, geralmente chamada cultura.
Nesta segunda natureza encontram-se muitas coisas: deuses, narrativas, gramáticas relativas a qualquer objecto do mundo (as estrelas, as pedras, os micróbios, a música, a narração, o cálculo, a subjectividade, a sociabilidade...), uma intensa actividade protética (todos os objectos que permitem a este animal não acabado habitar o mundo), leis, princípios, valores... Ora, danificando-se este quadro, tornando-se imprecisas as leis e os princípios que o regem, podem ocorrer, não só efeitos individuais e sociais deletérios, mas também ameaças sobre a espécie, visto nada mais ser suficientemente legítimo para se opor a manipulações cujo objectivo é transformar a espécie, logo que isso seja possível.
Já começaram a ouvir-se algumas vozes, inclusive entre a intelectualidade, que acolhem a pretensa boa notícia de uma próxima mutação do homem. Em particular o filósofo alemão Peter Sloterdijk, que já se celebrizou ao pronunciar, em fins de 1999, na Alemanha, uma conferência intitulada Regras para o parque humano [7], num colóquio dedicado à obra de Heidegger, conferência essa que suscitou uma grande controvérsia, nomeadamente com Jürgen Habermas. As declarações deste “nietzscheano de esquerda” parecem muito significativas no respeitante à forma como a actual desregulação simbólica pode confundir as mentes.
Numa outra conferência, proferida no Centro Pompidou, em Paris, em Março de 2000 [8], Sloterdijk retomou uma tese de Heidegger, invertendo-a. Já não se tratava de dizer que a técnica era o «olvido do Ser», mas sim de proclamar que ela contribui para a «domesticação do Ser», constituindo o atributo maior do homem neoténico [9], levado a produzir-se ele próprio. Como se a técnica fosse a única conquista do homem neoténico e o quadro simbólico feito de prescrições e interditos nunca tivesse existido! Com tais premissas, todas as possíveis consequências da técnica ficam previamente justificadas. A deliberação moral é aliás tão pouco levada em conta neste discurso “desinibido” que só a técnica acaba por poder determinar uma ética – e, note-se, não uma ética qualquer, mas uma «ética do homem mais elevado», como tal aberta às «automanipulações biotecnológicas».
Neste discurso, a ética consiste assim em pôr de lado qualquer forma de exame moral. Deste modo, o homem, puxado para fora de si mesmo pelo Ser, teria a responsabilidade de alterar a sua condição biológica para se abrir à multiplicidade biológica [10]. Ao homem, que nasceu insuficiente e é produto da técnica, só resta, por conseguinte, levar esta última às suas derradeiras consequências. O velho homem tem pois de ser rebaptizado «homem primevo» – expressão em que ressoa um claro eufemismo de «primitivo» (como, por exemplo, em “museu das Artes Primevas”) –, porque este homem já não passa de um primitivo perante os homens superiores que hão-de vir. Não se deverá ver, de forma alucinada, o retorno do Ser na sinistra farsa histórica do nazismo – porque isso não passou de um lamentável erro do meu querido mestre, parece dizer Sloterdijk. E agora que o verdadeiro êxtase se apresenta: o homem superior, o autêntico, está a chegar, e os seus aduladores cantam-no já, policiando o caminho por onde ele há-de passar.
Ora acontece que este caminho está pejado de «homens primevos» – sendo nisto que reside o problema. Para o nosso profeta, o velho homem primitivo é manhoso, revelando-se constitutivamente surdo – passo a citar – ao «potencial generoso» da transformação «pluriforme». Mais: devido ao seu «egoísmo antigo» ele apenas serviria para «exercer o poder sobre as matérias­‑primas», para «delas dispor» com vista a subtrai-las às mudanças prometidas – compreendendo-se que essas tais «matérias-primas» poderão muito bem ser o próprio corpo humano. Este velho homem não passaria, evidentemente, do «homem do ressentimento», pronto a provocar «ajuntamentos» para recrutar «populações desinformadas» e a levá-las para «falsos debates sobre ameaças não compreendidas, sob a batuta de editorialistas lascivos»... Abaixo, portanto, os velhos «humanólatras» que pretendem, movidos por «uma histeria antitecnológica», opor-se a esse salto a que o Ser nos apela, porque, obviamente, não há «nada de perverso» nisso de alguém querer «transformar­‑se por autotécnica»...
Estas declarações de Sloterdijk – por força do seu próprio excesso – revelam-se de grande utilidade, permitindo compreender que a actual desinibição simbólica não é apenas uma questão de emancipação dos costumes e de um fim mais ou menos doloroso do patriarcado. Na realidade, a actual supressão dos interditos revela que perdura um autêntico projecto pós-nazi sacrificial do humano, orientado pelo anarco-capitalismo, o qual, ao destruir todas as regulações simbólicas, torna possível que a técnica avance sozinha até à destruição da humanidade.

A CIVILIZAÇÃO DO CONSUMO TOTAL

«O discurso capitalista, como já dizia o doutor Lacan, é algo de loucamente astucioso (...), funciona às mil maravilhas, não pode funcionar melhor. Mas, justamente, funciona demasiado depressa, consome­‑se. E tão facilmente se consome, que se consume» [11]. Resumindo: o verdadeiro problema do capitalismo é ele funcionar bem demais. De tal forma que um dia terá de acabar por tudo consumir: os recursos, a natureza, tudo sem excepção – incluindo os indivíduos que o servem.
Na lógica capitalista, notou Lacan, «o antigo escravo» foi substituído por homens reduzidos ao estado de «produtos»: «produtos (...) consumíveis tanto como os outros» [12]. Esta observação permite­‑nos compreender o seguinte: é exactamente neste sentido, deveras ameaçador, que devemos entender as expressões ligeiramente eufóricas que se encontram em todos os escritos neoliberais – «o material humano», o «capital humano», a gestão esclarecida dos «recursos humanos», a «boa governança ligada ao desenvolvimento humano».
O anarco-capitalismo propagou a ideia de que atribuirmo-nos leis é cruel e se limita a uma espécie de insuportável masoquismo, remetendo cinicamente para o puritanismo obscurantista as pessoas que tenham necessidade de mais consciência. Convém todavia lembrar aqui que os filósofos das Luzes, como Jean­‑Jacques Rousseau e Immanuel Kant, diziam que a liberdade em nada mais consiste do que em obedecer às leis que se estabeleceu para si próprio. Na verdade, temos necessidade de verdadeiras leis jurídicas e morais, e não de sucedâneos moralizantes, para finalmente fazer justiça, para salvaguardar o mundo antes que seja tarde demais, para preservar a espécie humana, que se encontra ameaçada por uma lógica cega. Acontece porém que nós estamos em vias de revogar todas as leis – com excepção das do mais forte –, e a continuarmos nesta funesta direcção entraremos numa crueldade muito mais viva do que a de termos de nos submeter a leis. Entraremos numa crueldade desconhecida, que consiste em querer modificar este corpo humano com mais de 100.000 anos. Para tentar atamancar um outro corpo.

[1] Dany-Robert Dufour, L’art de réduire les têtes. Sur la nouvelle servitude de l’homme libéré à l’ère du capitalisme total, Denoël, Paris, 2003.
[2] Karl Marx e Friedrich Engels, Manifeste du Parti communiste, Éditions sociales, Paris, 1976, p. 35.
[3] Pic de la Mirandole (1463-1494), Discours sur la dignité de l’homme, citado por Jean Carpentier, Histoire de l’Europe, Seuil, Paris, 1990, pp. 224-225.
[4] Em “O fim da História dez anos depois”, Fukuyama repete o seu credo: «A democracia liberal e a economia de mercado são as únicas possibilidades viáveis para as nossas sociedades modernas». Mas reconhece uma insuficiência no tocante à sua concepção do fim da História: «A História não pode terminar enquanto as ciências da natureza contemporâneas não atingirem o seu termo. E nós encontramo-nos em vésperas de novas descobertas científicas que, pela sua própria essência, abolirão a humanidade enquanto tal», Le Monde, 17 de Junho de 1999.
[5] Francis Fukuyama, Our Posthuman Future: Consequences of the Biotechnology Revolution, Picador, 2003. Edição francesa: La Fin de l’homme: les conséquences de la révolution biotechnologique, La Table Ronde, Paris, 2002.
[6] Ver os trabalhos do grande antropólogo norte-americano Stephen Jay Gould, O mundo depois de Darwin (Presença, Lisboa, 1988) e O polegar do panda (Gradiva, Lisboa, 1990).
[7] Peter Sloterdijk, Règles pour le parc humain, Mille et une nuits, Paris, 2000.
[8] Integrada numa colectânea de textos com o título La domestication de l’être, Mille et une nuits, Paris, 2000. Todas as citações que se seguem são extraídas desta obra.
[9] Que mantém os caracteres larvares ou juvenis. A neotenia é a persistência de caracteres filogenéticos larvares ou juvenis na fase adulta, como acontece com animais anfíbios. (N. dos T.)
[10] Esta diversificação, na realidade, já está em curso. A revista norte-americana Science, de 27 de Julho de 2001, relatou que uma equipa americana conseguiu implantar células estaminais cerebrais humanas em cérebros de fetos do macaco Macaca radiata por volta da décima segunda semana da sua gestação, podendo essa implantação levar à criação de símios antropóides cujos cérebros, por conseguinte, terão sido mecanicamente “humanizados”.
[11] Jacques Lacan, “Conférence à l’université de Milan”, 12 de Maio de 1972, texto inédito.
[12] Jacques Lacan, L’envers de ta psychanalyse, Seuil, Paris, 1991, sessão de 17 de Dezembro de 1969, p. 35.

Dany-Robert Dufour
http://www.infoalternativa.org/cultura/cultura018.htm

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