Em Portugal o Realismo e o Naturalismo, à semelhança do que ocorre com a literatura francesa, são duas direcções estéticas com certa independência. Saindo do Realismo, a que é posterior cronologicamente, o Naturalismo dele se diferencia por conduzir a ciência para o plano da obra de arte, fazendo desta como que meio de demonstração de teses científicas, especialmente de psicopatologia. O Realismo, mais esteticizante, embora se apoie no que as ciências do séc. XIX vinham afirmando e desvendando, não vai até à profundidade analítica do Naturalismo, donde advém a sua não-preocupação pela patologia, característica do romance naturalista. A par disso, enquanto o Naturalismo implica uma posição combativa, de análise dos problemas que a decadência social evidenciava, fazendo da obra de arte uma verdadeira tese com intenção científica, o Realismo apenas «fotografa» com certa isenção a realidade circundante, sem ir mais longe na pesquisa, sem trazer a ciência, dissertativamente, para o plano da obra. O romance realista encara a podridão social usando luvas de pelica, numa atitude fidalga de quem deseja sanar os males sociais, mas sente perante eles profunda náusea, própria dos sensíveis e estetas. O naturalista, controlando a sua sensibilidade, ou acomodando-a à ciência, põe luvas de borracha e não hesita em chafurdar as mãos nas pústulas sociais e analisá-las com rigorismo técnico, mais de quem faz ciência do que literatura. Em suma, realistas e naturalistas amparam-se nos mesmos preconceitos científicos bebidos na atmosfera cultural que envolve a todos, mas diferenciam-se no modo como aproveitam os dados de conhecimento na elaboração da sua obra de arte.
Essas diferenças, postas aqui em síntese e nos seus aspectos fundamentais, não têm valor absoluto, porquanto existem vários pontos de contacto entre Realismo e Naturalismo, por se orientarem pelas mesmas «verdades» científicas e coexistirem numa época saturada de revolução cultural. Mais ainda: muito embora se classifiquem os romancistas dessa época em realistas e naturalistas conforme a predominância duma dessas direcções estéticas, nos autores portugueses Realismo e Naturalismo acabam muitas vezes por se confundir.
Introduzido o espírito realista em Portugal através da Questão Coimbrã (1865), das Conferências do Casino (1871) e do Crime do Padre Amaro (1875) de Eça de Queirós, iniciou-se um movimento teórico que iria conduzir ao aparecimento do Naturalismo pouco depois. Assim, Júlio Lourenço Pinto (1842-1907) (Do Realismo na Arte, 1877; ensaios in Letras e Artes, 1883-1884; Estética Naturalista, 1885 ), José António dos Reis Dâmaso (1850-1895) (Anjo da Caridade, romance, 1871; Cenografias, contos, 1882; Júlio Dinis e o Naturalismo, 1884), António José da Silva Pinto (1848-1911) (Do Realismo na Arte, 3.ª ed., in Controvérsias e Estudos Literários, 1878; Realismos, 1880), Alexandre da Conceição (1842-1889) «Realismo e Realistas» e «Realistas e Românticos», in Ensaios de Crítica e Literatura, 1882), Alberto Carlos (A Escola Realista e a Moral, 1880), Luís Cipriano Coe!ho de Magalhães («Naturalismo e Realismo», in Notas e Impressões, 1890), Teixeira Bastos e outros teóricos movimentaram a questão do Naturalismo, que dessa forma se foi impondo ao longo da década de 80.
A par da actividade teorizante, alguns dos teóricos e outros autores lançaram-se à concretização do ideário naturalista. De pronto, duas foram as rotas seguidas, representadas pelo Realismo e pelo Naturalismo. Ressalvando-se os elementos comuns, à primeira pertenceram Eça de Queirós, Fialho de Almeida, até certo ponto Trindade Coelho – o contista de Os meus amores, cuja poética delicadeza merece lugar à parte –, Teixeira de Queirós, Luís de Magalhães (O Brasileiro Soares, 1886) e outros, mais preocupados com os aspectos exteriores da realidade física e humana, não obstante, como no caso de Eça, a tendência para o psicologismo. Mais descritivos do que analíticos, excepção feita de Eça, e assim mesmo parcialmente, não sondam a alma e o espírito das personagens senão para corroborar desvios de comportamento, no geral baseados no exacerbamento dos sentidos e nos apetites carnais. Esse primitivismo, feito de obediência a impulsos anormais superiores à vontade, tirânicos, patenteia-se em todos eles, excepto ainda Eça, que não lhe escapa por completo, como se observa na Luísa d' O Primo Basílio e na Amélia d' O Crime do Padre Amaro. Retratistas de exteriores e de episódios do quotidiano fisiológico e rasteiro, atêm-se mais à preocupação de surpreender coerentemente uma sociedade corroída que ao propósito de submetê-la à análise fria, imparcial, orientada para um mundo melhor. O naturalismo desses romancistas e contistas está muito mais na posição de espírito baseada no repúdio de qualquer subjectivismo e no desejar para a obra de arte uma orientação mental definidamente científica e objectiva. Esse relativo apego ao naturalismo de Zola explica-se pela influência recebida do romance balzaquiano, especialmente, e do flaubertiano.
É pouco, porém, em face do que se pode observar em romancistas ortodoxamente naturalistas, como José Augusto Vieira, Júlio Lourenço Pinto, Abel Botelho. Do primeiro citam-se: Fototipias do Minho, contos, 1879, e A divorciada, romance, 1881. Júlio Lourenço Pinto, teórico apaixonado do Naturalismo, pôs em vários romances (Margarida, 1879; Vida Atribulada, 1880; O Senhor Deputado, 1882; O Homem Indispensável, 1884; O Bastardo, 1889) e num livro de contos (Esboços do Natural, 1882) um quadro humano colhido ao vivo e, portanto, actual, mas com cientificismo dogmático que rouba autenticidade às suas criações, pelo intuito de só analisar produtos bastardos e hospitalares. Aqui, como em tudo, se observa a influência de Zola, tomado ao pé da letra, e não mesclado a talento e sensibilidade, necessários para o superar e criar romances de maior força e permanência.
Ainda sob a influência de Zola, Abel Botelho dispôs-se a criticar a sociedade do tempo na série Patologia Social, em outros três romances (Sem remédio..., Amor Crioulo, Os Lázaros) e num livro de contos (Mulheres da Beira), mostrando-lhe, justamente os aspectos perecíveis e em flagrante decomposição. Sua linguagem, forte, abundante, ágil, não esconde a vista aguda do homem sensível e o teatrólogo, capaz de perceber e pintar matizes e subtilidades de toda a ordem. Com altos e baixos, a Patologia Social está toda ela dentro dos moldes do Naturalismo, manifestando, além das qualidades do A., reconhecíveis ao primeiro contacto, a preocupação, em que está quase inteiramente isolado, pela luta de classes e pelas questões sociais em geral (cf. sobretudo Amanhã, vol. III da Patologia Social). Sua ortodoxia naturalista deformou em parte o alcance e o poder da sua obra, mas A. B. soube servir-se do magistério, de Zola para criar romances em que o seu talento de escritor vigoroso e fluente está presente a cada instante. Não escapou à tentação de pintar cenas e tipos escabrosos, mas mesmo nesse aspecto, sobretudo pelo modo como o fez, abriu caminho para as obras de Raul Brandão, debruçado sobre as mesmas chagas sociais, numa atitude de indignado e contemplativo, a sonhar um destino melhor para o Homem. Nesse sentido não se lhe nega valor, em que pese a superação do romance naturalista.
Com o advento do romance à Zola, o Realismo esgota o seu programa e o Naturalismo pouco dura no plano do interesse geral. Entrado o séc. XX noutra atmosfera mental, o Naturalismo desaparece, tragado pelo neo-espiritualismo que se vinha impondo a partir da década de 90. Feito o balanço, afora Eça, Fialho de Almeida e Trindade Coelho, mais realistas que naturalistas, só restam Abel Botelho, e, de certo ângulo, Teixeira de Queirós, como representantes de importância da prosa de ficção do último quartel do séc. XIX.
Moisés, Massaud, DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3ª edição, 3º volume, Porto, Figueirinhas, 1979
Essas diferenças, postas aqui em síntese e nos seus aspectos fundamentais, não têm valor absoluto, porquanto existem vários pontos de contacto entre Realismo e Naturalismo, por se orientarem pelas mesmas «verdades» científicas e coexistirem numa época saturada de revolução cultural. Mais ainda: muito embora se classifiquem os romancistas dessa época em realistas e naturalistas conforme a predominância duma dessas direcções estéticas, nos autores portugueses Realismo e Naturalismo acabam muitas vezes por se confundir.
Introduzido o espírito realista em Portugal através da Questão Coimbrã (1865), das Conferências do Casino (1871) e do Crime do Padre Amaro (1875) de Eça de Queirós, iniciou-se um movimento teórico que iria conduzir ao aparecimento do Naturalismo pouco depois. Assim, Júlio Lourenço Pinto (1842-1907) (Do Realismo na Arte, 1877; ensaios in Letras e Artes, 1883-1884; Estética Naturalista, 1885 ), José António dos Reis Dâmaso (1850-1895) (Anjo da Caridade, romance, 1871; Cenografias, contos, 1882; Júlio Dinis e o Naturalismo, 1884), António José da Silva Pinto (1848-1911) (Do Realismo na Arte, 3.ª ed., in Controvérsias e Estudos Literários, 1878; Realismos, 1880), Alexandre da Conceição (1842-1889) «Realismo e Realistas» e «Realistas e Românticos», in Ensaios de Crítica e Literatura, 1882), Alberto Carlos (A Escola Realista e a Moral, 1880), Luís Cipriano Coe!ho de Magalhães («Naturalismo e Realismo», in Notas e Impressões, 1890), Teixeira Bastos e outros teóricos movimentaram a questão do Naturalismo, que dessa forma se foi impondo ao longo da década de 80.
A par da actividade teorizante, alguns dos teóricos e outros autores lançaram-se à concretização do ideário naturalista. De pronto, duas foram as rotas seguidas, representadas pelo Realismo e pelo Naturalismo. Ressalvando-se os elementos comuns, à primeira pertenceram Eça de Queirós, Fialho de Almeida, até certo ponto Trindade Coelho – o contista de Os meus amores, cuja poética delicadeza merece lugar à parte –, Teixeira de Queirós, Luís de Magalhães (O Brasileiro Soares, 1886) e outros, mais preocupados com os aspectos exteriores da realidade física e humana, não obstante, como no caso de Eça, a tendência para o psicologismo. Mais descritivos do que analíticos, excepção feita de Eça, e assim mesmo parcialmente, não sondam a alma e o espírito das personagens senão para corroborar desvios de comportamento, no geral baseados no exacerbamento dos sentidos e nos apetites carnais. Esse primitivismo, feito de obediência a impulsos anormais superiores à vontade, tirânicos, patenteia-se em todos eles, excepto ainda Eça, que não lhe escapa por completo, como se observa na Luísa d' O Primo Basílio e na Amélia d' O Crime do Padre Amaro. Retratistas de exteriores e de episódios do quotidiano fisiológico e rasteiro, atêm-se mais à preocupação de surpreender coerentemente uma sociedade corroída que ao propósito de submetê-la à análise fria, imparcial, orientada para um mundo melhor. O naturalismo desses romancistas e contistas está muito mais na posição de espírito baseada no repúdio de qualquer subjectivismo e no desejar para a obra de arte uma orientação mental definidamente científica e objectiva. Esse relativo apego ao naturalismo de Zola explica-se pela influência recebida do romance balzaquiano, especialmente, e do flaubertiano.
É pouco, porém, em face do que se pode observar em romancistas ortodoxamente naturalistas, como José Augusto Vieira, Júlio Lourenço Pinto, Abel Botelho. Do primeiro citam-se: Fototipias do Minho, contos, 1879, e A divorciada, romance, 1881. Júlio Lourenço Pinto, teórico apaixonado do Naturalismo, pôs em vários romances (Margarida, 1879; Vida Atribulada, 1880; O Senhor Deputado, 1882; O Homem Indispensável, 1884; O Bastardo, 1889) e num livro de contos (Esboços do Natural, 1882) um quadro humano colhido ao vivo e, portanto, actual, mas com cientificismo dogmático que rouba autenticidade às suas criações, pelo intuito de só analisar produtos bastardos e hospitalares. Aqui, como em tudo, se observa a influência de Zola, tomado ao pé da letra, e não mesclado a talento e sensibilidade, necessários para o superar e criar romances de maior força e permanência.
Ainda sob a influência de Zola, Abel Botelho dispôs-se a criticar a sociedade do tempo na série Patologia Social, em outros três romances (Sem remédio..., Amor Crioulo, Os Lázaros) e num livro de contos (Mulheres da Beira), mostrando-lhe, justamente os aspectos perecíveis e em flagrante decomposição. Sua linguagem, forte, abundante, ágil, não esconde a vista aguda do homem sensível e o teatrólogo, capaz de perceber e pintar matizes e subtilidades de toda a ordem. Com altos e baixos, a Patologia Social está toda ela dentro dos moldes do Naturalismo, manifestando, além das qualidades do A., reconhecíveis ao primeiro contacto, a preocupação, em que está quase inteiramente isolado, pela luta de classes e pelas questões sociais em geral (cf. sobretudo Amanhã, vol. III da Patologia Social). Sua ortodoxia naturalista deformou em parte o alcance e o poder da sua obra, mas A. B. soube servir-se do magistério, de Zola para criar romances em que o seu talento de escritor vigoroso e fluente está presente a cada instante. Não escapou à tentação de pintar cenas e tipos escabrosos, mas mesmo nesse aspecto, sobretudo pelo modo como o fez, abriu caminho para as obras de Raul Brandão, debruçado sobre as mesmas chagas sociais, numa atitude de indignado e contemplativo, a sonhar um destino melhor para o Homem. Nesse sentido não se lhe nega valor, em que pese a superação do romance naturalista.
Com o advento do romance à Zola, o Realismo esgota o seu programa e o Naturalismo pouco dura no plano do interesse geral. Entrado o séc. XX noutra atmosfera mental, o Naturalismo desaparece, tragado pelo neo-espiritualismo que se vinha impondo a partir da década de 90. Feito o balanço, afora Eça, Fialho de Almeida e Trindade Coelho, mais realistas que naturalistas, só restam Abel Botelho, e, de certo ângulo, Teixeira de Queirós, como representantes de importância da prosa de ficção do último quartel do séc. XIX.
Moisés, Massaud, DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3ª edição, 3º volume, Porto, Figueirinhas, 1979
Sem comentários:
Enviar um comentário