Não é empresa fácil historiar – e muito menos resumir – o complexo movimento chamado «Realismo» na literatura portuguesa do séc. XIX. Por trás dessa palavra, cifra simplista, se escondem e convivem fenómenos e atitudes estéticas de natureza muito diversa. Abre esse período a ruidosa Questão Coimbrã, polémica literária que significou – na frase de Teófilo Braga – «a dissolução do Romantismo». Nela se manifestou pela primeira vez o protesto da geração nascida por meados do século contra o exagero balofo e caduco do gosto romântico, convertido em gesto vácuo de monótona artificiosidade. Dela surgiu o Realismo. A França – e através desta a Alemanha e a Inglaterra – foi a principal inspiradora dos dirigentes da rebelião coimbrã. Entre 1860 e 1865 saturaram-se de cultura europeia, aspirando a plenos haustos os ares que vinham de fora, absorvendo de golpe o humanitarismo social francês de 48. Leram e decoraram Proudhon e Quinet, o satanismo baudelairiano, a erudição histórica de Leconte de Lisle, o determinismo de Taine, as eloquências liberais humanitárias de Rugo, o diletantismo crítico de Renan, o revolucionarismo apostólico de Michelet, – e ainda Hegel, e Heine, e Darwin, e Flaubert. Espíritos muitos díspares, tinham, porém, em comum o prurido de irreverência e de liberdade, o sentimento de revolta contra a estagnação do Ultra-Romantismo constitucionalista e o intuito de renovação do clima das letras e da vida portuguesa. Fora desta comunidade de formação e de atitude geracional, cada um deles seguiu uma trajectória criadora e vital acentuadamente diferenciada. Contudo, Antero de Quental, Teófilo Braga, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro – e Ramalho Ortigão e Oliveira Martins, que depois se lhes uniram – surgem nos manuais de literatura agrupados sob a epígrafe irmanadora de «Realismo». E talvez isso não seja tão injusto e inexacto como à primeira vista pode parecer, porquanto não é fácil acharmos uma etiqueta mais adequada e precisa para denominar os laços emotivos, intelectuais e artísticos que os ligavam.
De facto, a palavra «realismo» já se envolvera na contenda literária de 1865-66 e fora utilizada como sinónimo de «arte nova» ou «estilo coimbrão». Um dos espíritos críticos mais avisados da época, Luciano Cordeiro, que terçou armas na polémica entre coimbrões e lisboetas, publicou um artigo n' A Revolução de Setembro (7 de Novembro de 1867), intitulado «A arte realista», no qual, adoptando uma posição ecléctica, verberava quer os moços que injuriavam Castilho em nome da «verdade» artística do «Realismo», quer os ultra-românticos que tremiam de furor e desespero à simples menção da odiada palavra. Cordeiro acusava tanto uns como outros de aceitar como «Realismo» a banal e superficial «tradução da objectividade material das coisas». E anunciava, com a dissolução do Romantismo, periclitante e decrépito, o advento da «escola crítica», que, falando à consciência e à razão e exigindo maior cultura intelectual e mais profundo conhecimento dos problemas filosóficos e sociais da época, repudiaria tanto o realismo materialista da arte pela arte como a «inspiração» romântica – cuja manifestação nesse momento era o lirismo sentimental e elegíaco e o formalismo estreitamente provinciano da literatura oficial, na poesia e no romance. Cordeiro, de facto, percebia que nessa altura os rebeldes de Coimbra representavam um segundo Romantismo que tinha tanto de truculento como o Ultra-Romantismo tinha de pacato. Neste segundo Romantismo latejava, porém, uma inquietação viva por formas de verdade artística de que havia de brotar o Realismo.
O segundo episódio do processo de aparecimento do Realismo verificou-se em 1871, nas Conferências Democráticas do Casino. Nesta nova manifestação pública da geração de Coimbra, já em plena maturidade, os contornos do Realismo desenharam-se mais nitidamente, embora a sua formulação teórica estivesse longe de responder aos postulados doutrinais hoje aceites como basilares do Realismo de escola francês. Eça de Queirós, que na Questão de 1865 fora simples espectador, e que até 1871 apenas se manifestara literariamente com uma nebulosa mistura de retalhos de romantismos de além-fronteiras e de parnasianismos de cunho satânico, foi agora o expositor doutrinário da «nova literatura». A sua conferência versou sobre «O Realismo como nova expressão da Arte» – título em que aparecia a palavra pomo de discórdia. Sob a influência do Cenáculo e do magistério de Antero, Eça aproximou curiosamente as teorias tainianas do determinismo do meio com os postulados estético-sociais de Proudhon, vergastando o estado decadente das letras nacionais e propugnando uma arte que respondesse às aspirações do espírito dos tempos, que agisse como regeneradora da consciência social e que, desterrando o falso, pintasse a realidade. Essa arte, uma arte revolucionária, era o Realismo; renegando a arte pela arte, a retórica vácua e a invenção romanesca, procedia pela observação e pela experiência, pela fisiologia, ciência dos temperamentos e dos caracteres; enfim, visava a dilucidação dos problemas morais e o aperfeiçoamento da Humanidade. Com este cientificismo Eça já situava o Realismo, consciente ou inconscientemente, adentro do Naturalismo de Zola. A conferência de Eça provocou nova batalha. Nas páginas d' A Revolução de Setembro, Pinheiro Chagas – que fora motivo e combatente no recontro de 1865 – atacou Eça e o detestado Realismo. Outras penas, porém, saíram em defesa do conferencista e das suas ideias. E novamente Luciano Cordeiro entrou na lide, comentando a dissertação e salientando que já ele, em 1868, tinha defendido ideias parecidas, ao falar do seu conceito tainiano da arte. Dois anos mais tarde Eça publicou o conto «Singularidades duma Rapariga Loira» (recolhido em Contos, 1902) – que, na opinião de Fialho de Almeida, é «a primeira narrativa realista escrita em português».
A batalha efectiva da implantação do Realismo no romance começou com a publicação d' O Crime do Padre Amaro, seguida dois anos mais tarde por O Primo Basílio, obras caracterizadas ambas por métodos de narração e de descrição baseados numa minuciosa observação e análise psicofisiológicas, com a anatomia moral das personagens referida a factores deterministas de meio, educação e hereditariedade, à maneira de Zola – e com evidente intuito de crítica de costumes e reforma social. O primeiro destes romances foi acolhido pelos críticos com um silêncio significativo e escandalizado. O segundo provocou o escândalo aberto. A colisão polémica entre os inimigos dos processos realistas de efabulação e os sequazes da nova tendência alcançou a sua maior virulência em 1880-81 – justamente quando o «chefe da escola» começara a fugir, com a publicação d' O Mandarim, da «incommode soumission à la vérité, la torture de l'analyse, l'impertinente tyrannie de la réalité». Naquela data novamente Pinheiro Chagas arremete, num jornal brasileiro, contra Eça, tachando-o de antipatriota, pelo modo como apresenta a sociedade portuguesa. António da Silva Pinto (1848-1911), que em 1877, num opúsculo intitulado Do Realismo na Arte, expusera a teoria da escola e elogiara Eça em termos calorosos, publicava agora outro (Realismos, 1880) ridiculizando os processos do novo estilo; e Camilo Castelo Branco, o mestre do romance romântico, então no cume da fama, que em 1879 dera a lume o Eusébio Macário, paródia da técnica narrativa dos realistas, publicava em 1880 um novo «pastiche», A Corja, onde o intuito caricatural era ainda mais evidente. O resultado foi uma violenta polémica, esmaltada de injúrias, com um dos paladinos das novas tendências, Alexandre da Conceição, e na qual tomaram parte apaixonadas penas dum e doutro bando. Curiosamente, Camilo, «realista inconsciente», acabou por aceitar, e empregar de boa fé, muitos dos processos do realismo, como provou n' A Brasileira de Prazins (1882). O atrevimento de certos passos dos romances de Eça, principalmente d' O Primo Basílio, escandalizava as pessoas de moral timorata, e chegaram a aparecer folhetos acusando os realistas de contribuírem para a «desmoralização das famílias» (Carlos Alberto Freire de Andrade, A Escola realista. Opúsculo oferecido às Mães, 1881).
Na década decorrida desde as Conferências Democráticas do Casino, o Realismo lograra um núcleo de adeptos que se empenharam em explicar e defender o seu credo estético, contra a acusação, que os ultra-românticos puseram a circular, de «grosseria» e imoralidade. Alguns destes teóricos circunscreveram-se a um realismo limitado, como Luís de Magalhães («0 romance realista e a estética positivista», 1880; «Naturalismo e realismo», 1890), que deu o seu contributo à novelística com O Brasileiro Soares (1886), prefaciado por Eça. Dentro dessa tendência poderíamos incluir Trindade Coelho, Fialho de Almeida e Teixeira de Queirós. Outros fecharam-se num Naturalismo ortodoxo e intransigente. Os corifeus mais destacados desta posição doutrinária foram José António dos Reis Dâmaso (1850-1895) e Júlio Lourenço Pinto (1842-1907), autor da Estética Naturalista (1885), que pretendia ser o «evangelho» onde se continha o dogma da seita, mas que no campo teórico é o principal trabalho aparecido. Tanto estes dois como outros cultores do Naturalismo «enragé» não foram muito afortunados na prática artística dos seus dogmáticos princípios. Os seus romances, sistemáticamente elaborados de acordo com «O método a seguir na aplicação do Realismo à Arte» (1883-1884), de J. Lourenço Pinto, não passam hoje de mortos documentos histórico-literários. Tanto este «método» como os trabalhos críticos de Reis Dâmaso foram publicados na Revista de Estudos Livres, fundada em 1883 por Teófilo Braga sob o signo comtiano, publicação que foi o órgão oficial da ortodoxia naturalista. Nesta revista se insurgiu Reis Dâmaso contra Eça por este, ao publicar O Mandarim, ter «atraiçoado» os postulados do romance «fisiológico» à Zola. A oposição ao Realismo durava ainda em 1887, data em que Pinheiro Chagas, o «homem fata1», rejeitou A Relíquia no concurso para o Prémio D. Luís I, da Academia – a despeito de, nessa obra, Eça ter abandonado completamente as suas preocupações de escola para praticar uma fórmula livre e pessoal de estilização realista, na qual o seu lirismo essencial e o seu humor fantasista se combinavam com «as nudezas da Verdade». Por 1890 o Realismo-Naturalismo tinha perdido a sua vigência. Em 1893, o próprio Eça declara que «o homem experimental, de observação positiva, todo estabelecido sobre documentos, findou (se é que jamais existiu, a não ser em teoria)» («Positivismo e Idealismo», in Notas Contemporâneas).
Nos outros géneros o Realismo produziu frutos muito desiguais. Não houve uma crítica normativa, sistemática – se exceptuarmos o malogrado Moniz Barreto, forte capacidade analítica e sintética, dotado de fina sensibilidade e munido de amplas leituras estrangeiras, que, inspirado em Taine, realizou uma obra breve, é certo, mas em muitos aspectos ainda válida. O teatro não foi atingido pelas novas ideias. Não houve drama que possa ser chamado realista; o palco ficou apegado anacrónicamente ao gosto romântico. A poesia foi multiforme e teve correntes que se entrecruzaram muito complexamente. Actuaram, com efeito, no período realista tendências assaz divergentes, sujeitas a influências muito diversas. Aliás, a própria natureza do género, de carácter subjectivo, íntimo e pessoal, conspirava contra o predomínio duma determinada doutrina. A par do revolucionarismo e do angustiado misticismo metafísico de Antero, encontramos a enfática poesia da Humanidade de Teófilo, o prosaísmo satírico de João Penha, o lirismo social e democrático de Guilherme de Azevedo e de Gomes Leal, o «quotidianismo» citadino e burguês de Cesário Verde, o parnasianismo preciosista de Gonçalves Crespo e o verbo satânico, caudaloso e tonitruante de Guerra Junqueiro, intentando casar Ciência e Poesia (v. Parnasianismo). Resumindo, poderia dizer-se que não foi o Realismo português, visto no seu conjunto, tanto uma escola literária, bem definida como um sentimento novo, uma nova atitude espiritual em que couberam direcções e dimensões muito divergentes, que se alçou contra um «idealismo» sem ideais. A sua consequência mais vital e duradoura foi romper a incuriosidade do patriotismo provinciano dos ultra-românticos, abrindo as comportas do espírito nacional a todas as influências de fora, alargando a escolha de motivos literários e renovando as letras duma maneira ampla.
Guerra da Cal, Ernesto, DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3ª edição, 3º volume, Porto, Figueirinhas, 1979
De facto, a palavra «realismo» já se envolvera na contenda literária de 1865-66 e fora utilizada como sinónimo de «arte nova» ou «estilo coimbrão». Um dos espíritos críticos mais avisados da época, Luciano Cordeiro, que terçou armas na polémica entre coimbrões e lisboetas, publicou um artigo n' A Revolução de Setembro (7 de Novembro de 1867), intitulado «A arte realista», no qual, adoptando uma posição ecléctica, verberava quer os moços que injuriavam Castilho em nome da «verdade» artística do «Realismo», quer os ultra-românticos que tremiam de furor e desespero à simples menção da odiada palavra. Cordeiro acusava tanto uns como outros de aceitar como «Realismo» a banal e superficial «tradução da objectividade material das coisas». E anunciava, com a dissolução do Romantismo, periclitante e decrépito, o advento da «escola crítica», que, falando à consciência e à razão e exigindo maior cultura intelectual e mais profundo conhecimento dos problemas filosóficos e sociais da época, repudiaria tanto o realismo materialista da arte pela arte como a «inspiração» romântica – cuja manifestação nesse momento era o lirismo sentimental e elegíaco e o formalismo estreitamente provinciano da literatura oficial, na poesia e no romance. Cordeiro, de facto, percebia que nessa altura os rebeldes de Coimbra representavam um segundo Romantismo que tinha tanto de truculento como o Ultra-Romantismo tinha de pacato. Neste segundo Romantismo latejava, porém, uma inquietação viva por formas de verdade artística de que havia de brotar o Realismo.
O segundo episódio do processo de aparecimento do Realismo verificou-se em 1871, nas Conferências Democráticas do Casino. Nesta nova manifestação pública da geração de Coimbra, já em plena maturidade, os contornos do Realismo desenharam-se mais nitidamente, embora a sua formulação teórica estivesse longe de responder aos postulados doutrinais hoje aceites como basilares do Realismo de escola francês. Eça de Queirós, que na Questão de 1865 fora simples espectador, e que até 1871 apenas se manifestara literariamente com uma nebulosa mistura de retalhos de romantismos de além-fronteiras e de parnasianismos de cunho satânico, foi agora o expositor doutrinário da «nova literatura». A sua conferência versou sobre «O Realismo como nova expressão da Arte» – título em que aparecia a palavra pomo de discórdia. Sob a influência do Cenáculo e do magistério de Antero, Eça aproximou curiosamente as teorias tainianas do determinismo do meio com os postulados estético-sociais de Proudhon, vergastando o estado decadente das letras nacionais e propugnando uma arte que respondesse às aspirações do espírito dos tempos, que agisse como regeneradora da consciência social e que, desterrando o falso, pintasse a realidade. Essa arte, uma arte revolucionária, era o Realismo; renegando a arte pela arte, a retórica vácua e a invenção romanesca, procedia pela observação e pela experiência, pela fisiologia, ciência dos temperamentos e dos caracteres; enfim, visava a dilucidação dos problemas morais e o aperfeiçoamento da Humanidade. Com este cientificismo Eça já situava o Realismo, consciente ou inconscientemente, adentro do Naturalismo de Zola. A conferência de Eça provocou nova batalha. Nas páginas d' A Revolução de Setembro, Pinheiro Chagas – que fora motivo e combatente no recontro de 1865 – atacou Eça e o detestado Realismo. Outras penas, porém, saíram em defesa do conferencista e das suas ideias. E novamente Luciano Cordeiro entrou na lide, comentando a dissertação e salientando que já ele, em 1868, tinha defendido ideias parecidas, ao falar do seu conceito tainiano da arte. Dois anos mais tarde Eça publicou o conto «Singularidades duma Rapariga Loira» (recolhido em Contos, 1902) – que, na opinião de Fialho de Almeida, é «a primeira narrativa realista escrita em português».
A batalha efectiva da implantação do Realismo no romance começou com a publicação d' O Crime do Padre Amaro, seguida dois anos mais tarde por O Primo Basílio, obras caracterizadas ambas por métodos de narração e de descrição baseados numa minuciosa observação e análise psicofisiológicas, com a anatomia moral das personagens referida a factores deterministas de meio, educação e hereditariedade, à maneira de Zola – e com evidente intuito de crítica de costumes e reforma social. O primeiro destes romances foi acolhido pelos críticos com um silêncio significativo e escandalizado. O segundo provocou o escândalo aberto. A colisão polémica entre os inimigos dos processos realistas de efabulação e os sequazes da nova tendência alcançou a sua maior virulência em 1880-81 – justamente quando o «chefe da escola» começara a fugir, com a publicação d' O Mandarim, da «incommode soumission à la vérité, la torture de l'analyse, l'impertinente tyrannie de la réalité». Naquela data novamente Pinheiro Chagas arremete, num jornal brasileiro, contra Eça, tachando-o de antipatriota, pelo modo como apresenta a sociedade portuguesa. António da Silva Pinto (1848-1911), que em 1877, num opúsculo intitulado Do Realismo na Arte, expusera a teoria da escola e elogiara Eça em termos calorosos, publicava agora outro (Realismos, 1880) ridiculizando os processos do novo estilo; e Camilo Castelo Branco, o mestre do romance romântico, então no cume da fama, que em 1879 dera a lume o Eusébio Macário, paródia da técnica narrativa dos realistas, publicava em 1880 um novo «pastiche», A Corja, onde o intuito caricatural era ainda mais evidente. O resultado foi uma violenta polémica, esmaltada de injúrias, com um dos paladinos das novas tendências, Alexandre da Conceição, e na qual tomaram parte apaixonadas penas dum e doutro bando. Curiosamente, Camilo, «realista inconsciente», acabou por aceitar, e empregar de boa fé, muitos dos processos do realismo, como provou n' A Brasileira de Prazins (1882). O atrevimento de certos passos dos romances de Eça, principalmente d' O Primo Basílio, escandalizava as pessoas de moral timorata, e chegaram a aparecer folhetos acusando os realistas de contribuírem para a «desmoralização das famílias» (Carlos Alberto Freire de Andrade, A Escola realista. Opúsculo oferecido às Mães, 1881).
Na década decorrida desde as Conferências Democráticas do Casino, o Realismo lograra um núcleo de adeptos que se empenharam em explicar e defender o seu credo estético, contra a acusação, que os ultra-românticos puseram a circular, de «grosseria» e imoralidade. Alguns destes teóricos circunscreveram-se a um realismo limitado, como Luís de Magalhães («0 romance realista e a estética positivista», 1880; «Naturalismo e realismo», 1890), que deu o seu contributo à novelística com O Brasileiro Soares (1886), prefaciado por Eça. Dentro dessa tendência poderíamos incluir Trindade Coelho, Fialho de Almeida e Teixeira de Queirós. Outros fecharam-se num Naturalismo ortodoxo e intransigente. Os corifeus mais destacados desta posição doutrinária foram José António dos Reis Dâmaso (1850-1895) e Júlio Lourenço Pinto (1842-1907), autor da Estética Naturalista (1885), que pretendia ser o «evangelho» onde se continha o dogma da seita, mas que no campo teórico é o principal trabalho aparecido. Tanto estes dois como outros cultores do Naturalismo «enragé» não foram muito afortunados na prática artística dos seus dogmáticos princípios. Os seus romances, sistemáticamente elaborados de acordo com «O método a seguir na aplicação do Realismo à Arte» (1883-1884), de J. Lourenço Pinto, não passam hoje de mortos documentos histórico-literários. Tanto este «método» como os trabalhos críticos de Reis Dâmaso foram publicados na Revista de Estudos Livres, fundada em 1883 por Teófilo Braga sob o signo comtiano, publicação que foi o órgão oficial da ortodoxia naturalista. Nesta revista se insurgiu Reis Dâmaso contra Eça por este, ao publicar O Mandarim, ter «atraiçoado» os postulados do romance «fisiológico» à Zola. A oposição ao Realismo durava ainda em 1887, data em que Pinheiro Chagas, o «homem fata1», rejeitou A Relíquia no concurso para o Prémio D. Luís I, da Academia – a despeito de, nessa obra, Eça ter abandonado completamente as suas preocupações de escola para praticar uma fórmula livre e pessoal de estilização realista, na qual o seu lirismo essencial e o seu humor fantasista se combinavam com «as nudezas da Verdade». Por 1890 o Realismo-Naturalismo tinha perdido a sua vigência. Em 1893, o próprio Eça declara que «o homem experimental, de observação positiva, todo estabelecido sobre documentos, findou (se é que jamais existiu, a não ser em teoria)» («Positivismo e Idealismo», in Notas Contemporâneas).
Nos outros géneros o Realismo produziu frutos muito desiguais. Não houve uma crítica normativa, sistemática – se exceptuarmos o malogrado Moniz Barreto, forte capacidade analítica e sintética, dotado de fina sensibilidade e munido de amplas leituras estrangeiras, que, inspirado em Taine, realizou uma obra breve, é certo, mas em muitos aspectos ainda válida. O teatro não foi atingido pelas novas ideias. Não houve drama que possa ser chamado realista; o palco ficou apegado anacrónicamente ao gosto romântico. A poesia foi multiforme e teve correntes que se entrecruzaram muito complexamente. Actuaram, com efeito, no período realista tendências assaz divergentes, sujeitas a influências muito diversas. Aliás, a própria natureza do género, de carácter subjectivo, íntimo e pessoal, conspirava contra o predomínio duma determinada doutrina. A par do revolucionarismo e do angustiado misticismo metafísico de Antero, encontramos a enfática poesia da Humanidade de Teófilo, o prosaísmo satírico de João Penha, o lirismo social e democrático de Guilherme de Azevedo e de Gomes Leal, o «quotidianismo» citadino e burguês de Cesário Verde, o parnasianismo preciosista de Gonçalves Crespo e o verbo satânico, caudaloso e tonitruante de Guerra Junqueiro, intentando casar Ciência e Poesia (v. Parnasianismo). Resumindo, poderia dizer-se que não foi o Realismo português, visto no seu conjunto, tanto uma escola literária, bem definida como um sentimento novo, uma nova atitude espiritual em que couberam direcções e dimensões muito divergentes, que se alçou contra um «idealismo» sem ideais. A sua consequência mais vital e duradoura foi romper a incuriosidade do patriotismo provinciano dos ultra-românticos, abrindo as comportas do espírito nacional a todas as influências de fora, alargando a escolha de motivos literários e renovando as letras duma maneira ampla.
Guerra da Cal, Ernesto, DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3ª edição, 3º volume, Porto, Figueirinhas, 1979
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