quinta-feira, agosto 24, 2006

«Um bom sistema educativo está dependente de um conjunto de factores multifacetados»

Entrevista a Tero Autio, professor finlandês especialista em Currículo


A Finlândia é um país de que muito se tem falado. Apresentado como modelo de excelência educativa, esta nação, que se tornou independente apenas no início do século XX, apresenta, no entanto, características muito próprias.
Aproveitando a realização do III Colóquio Luso-brasileiro sobre Questões Curriculares, que decorreu em Braga em meados de Fevereiro, Regina Leite Garcia, professora da Universidade Federal Fluminense e colaboradora regular do jornal A Página, entrevistou Tero Autio, professor do Departamento de Formação de Professores da Faculdade de Educação da Universidade de Tampere, na Finlândia, autor da conferência de abertura deste encontro, intitulada “O legado da modernidade ocidental reconsiderado: Psicologia, poder e Estudos Curriculares”.
Nesta entrevista, Regina Leite Garcia conversa com Tero Autio sobre a sociedade e o sistema educativo finlandês, aborda o papel da universidade e da formação de professores na transformação da escola e da organização curricular e questiona até que ponto haverá legitimidade em estabelecer comparações simplistas entre os sistemas educativos de diferentes países.

O que o levou a aceitar o convite para participar neste encontro?

Aceitei este convite em primeiro lugar porque ele partiu de um grupo de investigadores com interesse nas questões do currículo, como António Flávio Moreira e José Augusto Pacheco, grupo do qual eu faço parte e com o qual me tenho correspondido regularmente. Depois, por querer aprender mais sobre sociedades que me são praticamente desconhecidas. Já tinha estado em Portugal como turista, e esta é a segunda vez que me desloco ao país, agora na condição de participante de um evento de educação, convidado a fazer a conferência de abertura do III Colóquio Luso-brasileiro sobre Questões Curriculares. É, sem dúvida, muito diferente o olhar de um turista e o olhar de um participante de um evento onde se encontram intelectuais que pensam o mundo e a educação e, no caso, o tema Currículo.
Interesso-me muito por essa faceta das sociedades que combina a alegria de viver com as agruras da vida. É o caso, por exemplo, do povo russo, que já sofreu durante um longo período e sofre ainda actualmente. A minha questão é a de saber que tipo de educação brota em tais contextos, em que se é sensível a conhecer não só com a razão mas também com o coração.

É interessante ouvi-lo referir o seu interesse por sociedades em que se é sensível tanto pelos sentimentos quanto pela razão, como acaba de referir, sociedades como a russa, a brasileira e a portuguesa em que os aspectos sentimentais e do coração aparecem com tanta força quanto as da razão, quando na sua palestra enfatizou a ideia de racionalidade. Como consegue conviver com esse paradoxo, na medida em que afirma, por um lado, ser muito racional, mas ao mesmo tempo abre o coração para sociedades marcadas pela pobreza e pela desigualdade, seja na sociedade, no local de trabalho, na escola? Que impressão colhe alguém proveniente de um país tão diferente face à realidade social de países como Portugal ou Brasil? Referiu-me em nossa conversa particular, por exemplo, que na Finlândia não existe um pronome correspondente a “ele” ou “ela”, como temos na língua portuguesa e na língua inglesa, por exemplo. Como explica isso? Será que se deve ao facto de a sociedade finlandesa se ter organizado de um modo diferente, no que se refere à questão de género?

Sim, de facto talvez haja uma longa tradição por detrás desse desenvolvimento que se reflecte na formação da nossa língua. Talvez pelo facto de termos sido um povo predominantemente agrícola, o que levava a que homens e mulheres, sem distinção de sexo, tenham desde sempre trabalhado lado a lado nas duras condições do clima nórdico, talvez tenha influenciado a forma como a própria língua acabou por incorporar essa característica relacional marcada pela igualdade. No nosso país não há grandes disparidades entre homens e mulheres.
Apesar de cerca de 60 por cento dos estudantes universitários, por exemplo, serem mulheres, a presidência da República ser ocupada por uma mulher e, recentemente, uma mulher ter sido eleita presidente do Supremo Tribunal através do sistema de quotas, não nego que ainda possam existir algumas marcas de desigualdade entre homens e mulheres no meu país.

Face ao que me diz sobre uma razoável ausência de preconceito sexual, eu pergunto­‑lhe como está estruturado o sistema de ensino? Inicia-se com a educação pré-primária?

Sim, as crianças vão cedo para o Jardim-de-Infância, onde não há distinção entre meninos e meninas. Brincam juntos e independente de serem meninos ou meninas têm possibilidade de brincar com bolas e bonecas sem censura ou impedimento. Não há preocupação em já ir formando personalidades masculinas ou femininas. Tanto meninos quanto meninas são autorizados a brincar com bonecas e carrinhos, sem qualquer tipo de pressão para as escolhas que possam ser feitas.

Os rapazes brincam com bonecas?

Sim, os rapazes são autorizados a brincar com bonecas. Eu, por exemplo, brinquei muito com bonecas, porque não gostava muito de carrinhos…

Rapazes e raparigas brincam juntos até que nível escolar?

Brincam juntos, desde o início da escolaridade e por toda a escolaridade, sem qualquer tipo de pressão para a segregação. Podem, mais tarde, no início do período escolar propriamente, começar a formar grupos, mas nunca são discriminados com base no sexo, seja na escola seja no grupo familiar ou de proximidade como o bairro… sempre existe este tipo de relação sem grandes preconceitos, como o que você referiu na sociedade brasileira. É interessante regressarmos às relações que se dão na casa. As nossas mulheres são fortes e reconhecidas no seu valor. Talvez por isso não defendem o feminismo da mesma forma que as americanas, por exemplo, porque desde sempre sentiram a força do seu papel na sociedade.

Existem educadores do sexo masculino, por exemplo, nos jardins-de-infância? Eu pergunto­‑lhe isto porque no Brasil não os encontramos nesta fase da educação das crianças na função de professores. Na verdade, os homens professores vão aparecendo apenas no final do ensino fundamental com a divisão disciplinar – o professor de geografia ou de ciências...

Sim. Não são muitos, mas existem. Após a recessão económica que atingiu o país nos anos 90, um número crescente de homens optou por essa actividade.

INCENTIVAR A LEITURA DESDE CEDO

Talvez apenas por esta ter sido uma possibilidade de emprego num momento de recessão económica e não por escolha. Mas há uma outra questão que também nos interessa e está ligada à aprendizagem da linguagem escrita. Ao que sabemos, a Finlândia tem também um dos mais elevados índices de literacia do mundo. A minha pergunta é: de que forma é incentivada a leitura no seu país?

A iniciação aos hábitos de leitura principia desde muito cedo, antes mesmo de uma criança entrar na escola, logo na infância. Pode-se mesmo afirmar que existe a tradição de pais e mães lerem por prazer para as crianças, nomeadamente antes de elas se deitarem à noite para dormir. É uma prática muito encorajada.
Ao mesmo tempo, possuímos uma excelente rede de bibliotecas, espalhada por todo o país; em cada cidade, em cada vilarejo há uma biblioteca e o empréstimo domiciliário é gratuito, possibilitando a qualquer pessoa ficar por um mês com um livro sem que tenha de pagar pelo empréstimo. Desta forma, os hábitos de leitura são elevados. Além disso, os edifícios onde se encontram as bibliotecas são na sua maioria muito confortáveis – frequentemente são desenhados por arquitectos – o que faz com que as pessoas tenham prazer em passar muito tempo no seu interior. E assim se vai desenvolvendo o hábito da leitura, sem necessidade de comprar livros ou de ter uma biblioteca particular.

De que forma se inicia a aprendizagem da linguagem escrita? Agora estou a referir­‑me à metodologia. As crianças aprendem paralelamente à linguagem escrita a linguagem imagética, a linguagem facial, a linguagem corporal, a linguagem gestual, a linguagem musical? Ou entram directamente na linguagem escrita? Como decorre esse processo?

Essa dimensão não é muito enfatizada na nossa cultura. Não somos habitualmente muito expressivos. No actual currículo aposta-se muito na chamada educação mediática [media education], onde se desenvolve algumas dessas competências que referiu, mas sobretudo na aprendizagem da língua materna, da música ou do desporto.
De um modo geral, penso que a juventude finlandesa tem um bom grau de expressão, decorrente da crescente adaptação a outros modelos de culturas trazidas pela televisão e por outros meios de comunicação mais recentes.

A televisão é utilizada na sala de aula?

Sim, mas o seu uso é objecto de uma estratégia devidamente estruturada e programada.

Essa estratégia inclui uma discussão crítica das mensagens e do apelo ao consumo habitualmente veiculado pela televisão?

Sim. Essa necessidade é reconhecida e é precisamente esse um dos objectivos da educação mediática. É esperado que as crianças desenvolvam uma atitude crítica em relação à televisão e ao que ela veicula, à propaganda e ao estímulo ao consumismo que a caracteriza. Para tal, foram constituídas comissões de trabalho encarregadas de analisar qual o tipo de abordagem mais adequado a este tema, discutindo-se igualmente se ela deverá ser concretizada através de uma disciplina própria ou numa abordagem transdisciplinar.

Com que idade é introduzida a aprendizagem por disciplinas na escola?

Talvez comece cedo demais. Na Finlândia costumamos dizer que se não habituamos as crianças desde o início às práticas da escola, elas desaparecem passadas duas semanas... Nesse sentido, é um sistema bastante disciplinado na medida em que se crê que as crianças vão construindo a sua identidade escolar a partir da divisão disciplinar.

«A ESCOLA É UMA INSTITUIÇÃO MUITO CONSERVADORA»

É, então, uma organização curricular através da qual se segmenta o conhecimento. Como se colocam os formuladores das políticas educacionais face a uma tendência na contemporaneidade de tentar recuperar a unidade do conhecimento, o que na escola apareceria como um movimento que, questionando a divisão disciplinar, propõe a integração dos diferentes saberes? Houve por exemplo na França, há poucos anos, um grande seminário que reuniu todos os professores e professoras dos liceus para discutir com intelectuais da Universidade esta questão que a todos preocupava. O seminário foi denominado “Relier les savoirs” e foi coordenado por Edgar Morin, com a participação de cientistas de todos os campos do conhecimento. E a discussão partiu dos problemas que a todos afligem hoje, problemas que não podem ser enfrentados com um campo do conhecimento, mas com o diálogo entre diferentes campos, como por exemplo, a questão ambiental.

Bom, os nossos tempos pós-modernos caracterizam-se pela tendência para esse tipo de segmentação do conhecimento, baseado na tradição da divisão do trabalho decorrente do processo de industrialização, que acaba por se reflectir no actual modelo de cidadania e da própria escola. Porém, esse modelo faz com que estejamos actualmente a enfrentar sérios problemas, precisamente porque não se consegue ter uma visão compreensiva das questões. E porque o tipo de saber exigido hoje em dia face aos grandes problemas que se apresentam, não obedece, de facto, a essa aprendizagem estanque. Na vida o conhecimento não é fragmentado mas na escola, de todos os níveis, ainda se apresenta fragmentado, dividido em disciplinas, o que dificulta aos alunos e alunas recuperarem a unidade perdida. E assim vamos dificultando aos nossos alunos e alunas participar da discussão e solução dos graves problemas, extremamente complexos, que hoje nos desafiam a todos.

É um tema que tem sido objecto de debate na sua universidade?

Sim, tanto na universidade como nos próprios cursos de formação de professores. E é uma questão que tem aplicações práticas ao nível da investigação. O caso do cancro da pele, por exemplo, que não consegue ser explicado e enfrentado apenas pela medicina, por estar directamente relacionado com as alterações climáticas, com o efeito estufa, com as mudanças dos hábitos das pessoas, entre outros factores, o que torna impossível que uma disciplina possa dar conta de abordá-lo, pois está para além da simples divisão disciplinar. Nesta medida, a nossa condição pós-moderna desafia fortemente muitos dos nossos procedimentos e hábitos enraizados, embora saibamos que para enfrentar este e tantos outros problemas que hoje se colocam é indispensável uma abordagem transdisciplinar, em que as fronteiras disciplinares são transpostas. Assim está a acontecer em relação a todos os grandes problemas, assim estão a trabalhar todos os grupos de ponta no mundo hoje.

Pensa que a compreensão do mundo e dos problemas que enfrentamos produzirá mudanças no modelo organizacional da escola e nos próprios currículos? Qual é a sua opinião?

Sim, essas questões terão necessariamente de produzir alterações. Na Finlândia costumamos dizer que a educação é para a vida, não para a escola. E mais tarde ou mais cedo esta visão terá de se aplicar aos currículos e à abordagem educativa num sentido mais amplo.

Pensa que essa mudança levará tempo?

Sim, porque a escola é uma instituição muito conservadora. Qualquer tipo de inovação, de conhecimento científico ou de transformação cultural só tem reflexo nos currículos depois de há muito ter sido produzida fora da escola. A distância entre o que a escola pretende que a criança aprenda e o que as crianças desejam aprender é imensa e talvez possa explicar o que vem sendo denominado fracasso escolar.
O problema é que essa característica conservadora da escola – com a qual ambos concordamos – faz com que o fosso que separa a escola da vida fora da escola seja cada vez maior e que, muitas vezes, haja uma grande discrepância entre aquilo que a escola considera indicado para os alunos e os interesses deles. E isso faz com que as crianças muitas vezes vão à escola sem vislumbrarem qualquer tipo de conhecimento que possa ajudar a transformar o seu quotidiano.

Tendo em conta a necessidade de enfrentarmos hoje os problemas que nos são colocados, podemos esperar que a escola mude para fazer face à necessidade de religar os conhecimentos conforme compreenderam os franceses? O que pode ser feito, por exemplo, ao nível da formação de professores?

Essa é uma pergunta difícil, dado o grau de conservadorismo da escola. No entanto, considero que uma forma de acelerar esse processo de mudança poderá passar por uma formação de professores que aposte nos profissionais de educação não apenas como elementos socializadores mas como intelectuais transformantes, no sentido de estes pensarem e actuarem na escola de uma forma crítica e criativa. Educação tem de provocar mudanças, e mais, educação não é para a escola mas para a vida.
Sintetizando eu diria que a formação de professores há­‑de atender a certos aspectos, como a socialização dos futuros professores e professoras; que se formem intelectuais transformadores; que haja educação pré­‑serviço e em serviço, ou seja, educação continuada ou permanente, que os professores e professoras sejam capazes de pensar alternativas às suas práticas pedagógicas, agindo diferentemente à rotina um dia aprendida e sempre repetida.

O que podem fazer os professores insatisfeitos com os resultados do seu trabalho, que querem mudar e criar uma alternativa pedagógica? Existe alguma experiência interessante na Finlândia que queira partilhar connosco?

Julgo que ainda não temos experiências concretas nesse sentido, mas ao nível da nossa universidade, por exemplo, estamos a tentar criar uma infra-estrutura – que abranja tanto os professores em exercício como aqueles que estão a entrar na profissão, no sentido de implementar um sistema de troca de ideias e de experiências, procurando reforçar as suas competências profissionais e sugerindo que existem diferentes maneiras de conduzir o trabalho diário na escola. Nós confiamos no potencial das professoras e professores das escolas e estamos a criar grupos de discussão, oferecendo-lhes orientação e aconselhamento, estimulando a experimentação e a capacidade de organização e a sua capacidade de crítica e criação de alternativas pedagógicas, procurando fortalecer a sua crença na possibilidade de mudanças. Esperamos que se crie uma rede de solidariedade de preocupações que leve a acções transformadoras.

De que forma pode a universidade participar deste processo, sendo tão corporativa e fechada nos seus feudos, o que impede ou, pelo menos, dificulta este diálogo inter ou transdisciplinar?

No caso da nossa universidade, nomeamos um elemento do nosso departamento que ficará responsável pela coordenação com as escolas envolvidas no projecto, numa tentativa de criar um órgão de discussão entre os professores da universidade e os professores e responsáveis das escolas de forma a identificar os problemas e actuar de forma conjunta no sentido de resolvê-los.
No entanto, não pretendemos que o processo seja concebido de forma fechada, isto é, preferimos confiar na capacidade de todas as pessoas envolvidas no processo no sentido de serem elas próprias a encontrar a melhor solução ou modelo de acção.

Poderia sugerir que esse processo que estão a tentar implementar, resultante de um diálogo entre a universidade e as escolas, através de uma partilha solidária das preocupações, assente na capacidade crítica e na criatividade com vista à procura de soluções alternativas e à possibilidade de transformação, se possa estender tanto à escola como à universidade?

Sim, é nesse espírito de partilha de ideias, de identificação de problemas comuns e de fluidez entre instituições que conduzimos este processo, como forma de conseguirmos responder a problemas comuns mas também às possibilidades e opções existentes. Na perspectiva de que a nossa instituição só é verdadeiramente educativa se estiver num processo permanente de aprendizagem.

«A ESPERANÇA É UMA ESPÉCIE DE OBRIGAÇÃO PROFISSIONAL PARA UM EDUCADOR»

Ouvi recentemente uma entrevista na BBC com um ministro finlandês, apresentado como o responsável pelo plano social e económico que transformou o país, onde era referido que a Finlândia possui o menor nível de disparidades e de discriminação (não sei se do mundo ou da Europa), e ele pareceu-me muito modesto quando afirmou não ser difícil concretizar tais medidas. Desde então, costumo referir essa afirmação de que é possível fazer desaparecer as disparidades que existem no mundo. No entanto, penso que a maioria dos governos não encara essa possibilidade muito a sério, por não ser interessante, do ponto de vista dos valores do mercado, uma sociedade onde não é estimulada a competição e o consumo.

Como vê a situação na Finlândia após tal plano?

A economia de mercado realmente não se interessa pelas mudanças que vêm acontecendo na Finlândia. Na verdade trata-se de um novo modelo de engenharia social, de um Projecto Económico e Social. Hoje em dia os problemas são mais complexos do que eram antigamente e a social democracia acredita na possibilidade de planeamento do futuro.
Na Finlândia existe uma nova retórica e uma nova geração de administradores públicos que encara a resolução dos problemas como questões meramente técnicas. É o denominado New Public Management (Nova Administração Pública). Mas não é assim tão simples. Os problemas são muito complicados. Talvez no contexto anterior pudesse haver problemas que se limitassem a aspectos técnicos, mas hoje em dia já não é assim.

Será que alguma vez os problemas da humanidade foram fáceis de resolver…?

Nunca foram fáceis de resolver, mas penso que talvez tenha existido uma crença nesse tipo de engenharia social. Em particular quando a social-democracia estava no poder e tinha uma forte convicção no seu optimismo em planear um futuro e nos indivíduos no seio da sociedade. Mas esse tipo de crença tem desaparecido.

Acredita que um ideal de sociedade como a finlandesa tem desaparecido?

Sim, tem desaparecido. E uma das marcas das sociedades pós-modernas em que vivemos é o desaparecimento da confiança e da própria ideia de progresso, e ao mesmo tempo uma aceitação das contingências acompanhada da nostalgia da omnipotência do planeamento. Desapareceu o sentimento de poder controlar através do planeamento, característica dos “tempos dourados”…

Não acredita, então, nos tempos dourados. No que acredita então?

Acredito na criatividade e acredito que nos movemos demasiado depressa no sentido da destruição do planeta. Mas enquanto estivermos vivos haverá sempre esperança… Eu costumo dizer em tom de brincadeira aos meus estudantes que a esperança é uma espécie de obrigação profissional para um educador.

O que diria para finalizar esta entrevista? Porque razão escolhemos, e voltamos a escolher diariamente, a profissão de educadores?

Muitas pessoas que me conhecem bem dizem que eu tenho uma perspectiva negra sobre muitos assuntos, mas que ao mesmo tempo sou irritantemente optimista. Este aspecto da minha personalidade talvez esteja relacionado com a minha curiosidade, com o meu interesse pela racionalidade e pelas complexidades da vida. É uma espécie de paradoxo interior. É um dos mistérios da vida, e alguns parecem estar dentro de mim.

É habitualmente referido que a Finlândia possui o melhor sistema educativo do mundo. Aceita esta avaliação? E, em caso afirmativo, como explica esse sucesso?

Eu penso que isso é apenas em parte verdade. Já tive oportunidade de conhecer diferentes culturas e sistemas organizacionais e considero que não se pode analisar
separadamente os sistemas educativos das respectivas sociedades, das práticas políticas, da sociedade, da economia e das próprias tendências sociais.
Um bom sistema educativo está dependente de um conjunto de factores multifacetados. Não há, por isso, uma resposta simples relativamente ao que está na origem de um bom sistema educativo, até porque ele é resultado de um processo longo e amadurecido.

Se o que diz é verdade, não considera ser injusto comparar diferentes sistemas educativos, com diferentes contextos sociais, e procurar classificá-los em função de parâmetros padronizados? Ou pior: tentar transferir experiências de um contexto para outro sem ter em conta as respectivas especificidades? Qual é a sua opinião relativamente ao actual processo de comparação, avaliação e classificação dos sistemas educativos a nível mundial?

Penso que este modelo de avaliação e de comparação dos sistemas educativos a que temos vindo a assistir é injustificável. Tal como referi na minha palestra, é uma questão de estandardização do mundo, sob a égide da economia, que responde a uma lógica perversa do ponto de vista moral e político. Não há apenas uma resposta, já que a escola é produzida pela sociedade e é impossível comparar diferentes sistemas educacionais que acontecem em diferentes contextos e, a partir da comparação, classificação e avaliação premiar alguns e punir outros e, tantas vezes chegando a sugerir que seja transplantado o sistema considerado bem sucedido para contextos em que os sistemas foram considerados deficientes.
Trata-se, mais uma vez, de um sistema disciplinador e punitivo, pelo que devemos questionar-nos que tipo de poderes, ou quem nos órgãos de poder, estabeleceu este tipo de avaliação. Há muitas fontes identificáveis de poder, especialmente na área económica, que ilustram bem a actual relação entre a economia e a política. Hoje em dia é a economia que dita as regras e as práticas sociais e educativas.
Nesse sentido, reafirmo ser imoral estabelecer este tipo de abordagem e de procurar fazer comparações entre nações com contextos muito diferentes. Mas ela é inerente à forte tendência de estandardização do mundo, que mais não é do que uma forma de afirmar quem somos “nós” e quem são os “outros”. Trata-se mais uma vez de um processo de construção e manutenção da hegemonia.

Tero Autio; Regina Leite Garcia; Ricardo Jorge Costa
http://infoalternativa.org/mundo/mundo166.htm

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