Entre as regiões do mundo vítimas das políticas neoliberais, a América Latina ocupa um lugar de destaque. Nenhum dos projectos de integração regional escapou aos seus efeitos destrutivos. As medidas de liberalização comercial e financeira aceleraram o controle do mercado interno de cada país pelas multinacionais norte‑americanas e europeias. Estas medidas também acentuaram a dependência das economias regionais em relação aos mercados externos.
No entanto, ao mesmo tempo que os países da Europa e da América do Norte prosseguiam o seu processo de integração, projectos similares se desenvolviam, muito particularmente na América do Sul. Eles procuravam proteger, ainda que de maneira mínima, as economias da região das consequências negativas da globalização. Nas décadas de 1980 e 1990, surgiram dois projectos antagónicos: de um lado, o Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul), integrando a Argentina, o Brasil, o Uruguai e o Paraguai [1]; do outro, o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), reunindo os Estados Unidos, o Canadá e o México.
Washington tinha a ambição de estender depois progressivamente o NAFTA ao resto do continente. Praticamente no momento em que esta iniciativa foi formalizada, e em que o Chile foi apresentado como o próximo candidato a integrar, a crise mexicana de 1994 levou o Congresso [dos EUA] a não mais autorizar o presidente dos Estados Unidos a recorrer, como os seus predecessores, ao fast track (via rápida) – direito de negociar acordos comerciais com outras nações, podendo os parlamentares posteriormente apenas aceitá‑los ou rejeitá‑los em bloco, sem possibilidade de emendas.
O governo dos Estados Unidos teve então que recorrer a um projecto mais antigo, que tinha ficado na gaveta: a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Encontraram‑se assim frente a frente dois projectos: um exclusivamente latino‑americano, o outro continental. A diferença – substancial – era a participação dos EUA neste último. Representando 70% do Produto Interno Bruto (PIB) do total dos países, eles transformavam a ALCA em ferramenta de consolidação da sua hegemonia, de modo algum em processo de integração.
No entanto, e paralelamente, uma tendência nova se impôs: a evolução ideológica de Hugo Chávez, em Caracas, a chegada ao poder de Luiz Inácio Lula da Silva, em Brasília, de Nestor Kirchner, em Buenos Aires, e, mais tarde, de Tabaré Vázquez, em Montevideo, criaram uma situação inteiramente nova.
A Venezuela, sobretudo depois da vitória de Chávez sobre a oposição no referendo revogatório de 15 de Agosto de 2004, conquistou um espaço político importante e utilizou‑o para redinamizar a lógica de integração. Isso, em particular, por meio de um dispositivo coordenação com os presidentes da Argentina e do Brasil, no qual estavam assim representadas as três principais economias da América do Sul. Uma primeira consequência foi encorajar a realização de reuniões sectoriais entre os ministros do sector energético, das políticas sociais e da economia. Diversos acordos foram assinados em matéria comercial, energética e de defesa. Para dar só um exemplo, Chávez anunciou em 2004 que a Venezuela, que importa para a sua indústria petrolífera 5 mil milhões de dólares de bens e serviços dos Estados Unidos, realizaria, a partir de então, 25% destas compras na Argentina e no Brasil. Ao fazê-lo, ainda que as opções destes difiram sensivelmente da sua perspectiva radical, conquistou aliados de circunstância nestes dois países.
No final de 2005, a Venezuela ingressou como membro pleno no Mercosul. Entretanto, após a vitória eleitoral de Evo Morales em La Paz, o coordenador geral da organização, o argentino Chacho Alvarez, anunciou que proporia a admissão da Bolívia nas mesmas condições. Começava assim a dissipar‑se a dualidade entre o Mercosul e a Comunidade Sul-americana das Nações, nascida por iniciativa do Brasil, em 8 de Dezembro de 2004, em Cuzco (Peru). Esta última era objecto de reservas por parte do governo de Kirchner, mais inclinado a dar prioridade ao alargamento do Mercosul [2]. Foi em Cuzco, durante esta cimeira, que Chávez, na sua linguagem cheia de imagens, sugeriu uma consigna: «A política como locomotiva, o social como bandeira, o económico como trilho e a cultura como combustível».
Ao mesmo tempo, Caracas multiplicou as iniciativas setoriais e desenvolveu uma iniciativa estratégica de aliança com Cuba: a Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA). No documento assinado em Abril de 2005, em Havana, os governos de Cuba e da Venezuela encetam uma forma de integração mais intensa entre economias dispondo já de um nível superior de identificação política. E isso a partir do momento em que – no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em Janeiro de 2005 – Hugo Chavez anunciou que o seu governo inscrevia a sua actuação no que ele designou como o «socialismo do século XXI».
“VANTAGENS COOPERATIVAS”
A ALBA é um projecto de integração que se apoia em mecanismos destinados a criar “vantagens cooperativas”, em vez das pretendidas “vantagens comparativas”, verdadeira antífona das teorias liberais do comércio internacional. As vantagens cooperativas procuram reduzir as assimetrias existentes entre os países do hemisfério. Elas apoiam-se em mecanismos de compensação, a fim de corrigir as disparidades de níveis de desenvolvimento entre uns e outros.
A ALBA pretende ser o contraponto da ALCA. Trata-se de implicar todos os actores económicos e sociais – cooperativas, empresas nacionais, empresas privadas pequenas, médias e grandes – e dar prioridade à resolução dos problemas essenciais das populações: alimentação, alojamento, criação de indústrias, preservação do meio ambiente. A ALCA, em contrapartida, não diferencia entre países grandes e pequenos, entre países dispondo ou não de recursos naturais, financeiros, energéticos ou outros, reforçando assim as dinâmicas que fazem ganhar os mais fortes – neste caso preciso, os Estados Unidos. Além disso, a ALCA pretende impor aos países critérios de segurança jurídica favoráveis às grandes corporações multinacionais, sem se preocupar um instante em ajudar os países mais fracos.
Na ALBA não há subsídios, mas créditos, máquinas e tecnologias para as empresas abandonadas pelos seus proprietários e recuperadas pelos seus trabalhadores; para as cooperativas e as comunidades de pequenos produtores – seja na indústria, no comércio ou nos serviços; e para as empresas públicas. A ALBA recebe o apoio dos Estados em matéria de crédito, assistência técnica e jurídica, de marketing e de comércio internacional, enquanto a ALCA deixa o campo livre às forças que dominam o mercado e às capacidades financeiras dos grandes agentes económicos.
Em Abril de 2005, foram assinados dezenas de acordos entre Caracas e Havana. Nesse momento, foi tomada a decisão de criar na Venezuela seiscentos centros de diagnóstico integral de saúde, seiscentos dispensários e trinta e cinco centros de alta tecnologia, para assegurar ao conjunto da população venezuelana o acesso gratuito à medicina e aos cuidados. Foi igualmente decidida a formação, por Cuba, de quarenta mil médicos e de cinco mil especialistas em tecnologias da saúde latino-americanos, assim como de dez mil médicos e enfermeiros venezuelanos. Do mesmo modo, prosseguiu a operação “Milagre”, que já permitiu a milhares de venezuelanos recuperar plenamente a visão, graças a uma intervenção benigna (a operação da catarata) realizada em Cuba. Ampliada à América latina, esta operação poderia fazer chegar o número dos beneficiários a cem mil – 800 uruguaios já beneficiaram.
Pela sua parte, a Venezuela decidiu abrir em Havana uma agência da empresa petrolífera nacional PDVSA, bem como uma sucursal do Banco Industrial da Venezuela. Os dois governos concederam preferências aduaneiras recíprocas para as suas trocas comerciais. Cuba decidiu adquirir 412 milhões de dólares em produtos venezuelanos, o que poderia suscitar a criação de dezenas de milhares de empregos no país parceiro – oferecendo um balão de oxigénio à sua economia em fraco estado.
Se o “eixo estratégico” Caracas‑Havana é alvo das críticas dos sectores conservadores, que não gostam de ver Cuba sair do seu isolamento, o desenvolvimento destas políticas de saúde, de que estavam desprovidos, é acompanhado com o maior interesse pelos movimentos sociais do conjunto do sub‑continente. Estas trocas constituem bons exemplos de comércio “justo” ou equitativo: cada país oferece o que pode produzir em boas condições, e recebe, em contrapartida, aquilo que precisa, independentemente dos preços no mercado mundial.
Uma abordagem radicalmente diferente da dos acordos bilaterais assinados por Washington com os países do hemisfério – entre eles os da América Central, o Chile, o Uruguai, o Peru e, proximamente, a Colômbia –, cujo resultado é acentuar as desigualdades, e graças aos quais os EUA, pelo seu peso determinante, consolidam posições que já lhes são estruturalmente favoráveis.
Antes mesmo da sua posse em La Paz, no último 22 de Janeiro, o novo presidente da Bolívia, Evo Morales, começou por Havana e Caracas um périplo ao estrangeiro que poderia abrir caminho a uma integração da Bolívia na ALBA. Algum tempo antes, tinha sido criada a Petrocaribe, empresa destinada a oferecer a onze países do Caribe petróleo a preços reduzidos, com facilidades de pagamento. Esta iniciativa do governo de Chávez procurava permitir aos países da região precaverem-se contra a volatilidade e a escalada de preços do petróleo no mercado internacional, aliviando-os parcialmente da pressão exercida por Washington para lhes impor acordos bilaterais.
UMA TENTATIVA AMBICIOSA
Ainda em estado embrionário, e sem prejulgar o seu sucesso, a ALBA constitui uma tentativa ambiciosa de integração regional que escapa à lógica do mercado. Mas as dificuldades não faltarão, porque deve envolver igualmente países como a Argentina, o Brasil e o Uruguai, provavelmente o México e talvez o Peru. As economias destes países são dominadas por empresas multinacionais, muito mais interessadas na manutenção da sua fatia de mercado nos Estados Unidos e na Europa, do que num tipo de integração que pode privá‑las destas facilidades.
Os presidentes destas nações experimentam mesmo as maiores dificuldades para avançar no âmbito bem menos ambicioso do Mercosul. Testemunham‑no os numerosos conflitos entre os sectores patronais do Brasil e da Argentina, que sabotam este processo de integração. Na verdade, a ALBA só pode realizar‑se entre governos decididos a desenvolver um projecto estratégico de grandes transformações estruturais internas, de maneira que as decisões que tomam envolvam efectivamente a economia dos seus países.
Ainda assim, algumas iniciativas emergem, preliminares de uma aliança entre países do continente. Como exemplos (seguramente, não exaustivos)... Chávez confirmou o investimento de 600 milhões de dólares da PDVSA – a companhia petrolífera nacional da Venezuela – no Uruguai, onde trabalhará com a sua homóloga, ANCAP, especializada na refinação. Além disso, foi assinado um acordo entre Caracas e Brasília para a construção de uma importante refinaria no Nordeste brasileiro. Reunidos em 18 de Janeiro, os presidentes Kirchner e Lula examinaram o projecto de construção de um oleoduto que, partindo da Venezuela, chegaria até à Argentina, passando pelo território brasileiro. A criação de uma grande companhia petrolífera sul‑americana, a Petrosul, talvez não seja apenas um sonho vazio...
A Telesur já funciona. Tendo como accionistas a Argentina, Cuba, o Uruguai e a Venezuela, esta cadeia de televisão procura fornecer informação latino-americana fora dos padrões das TVs privadas e da influência mediática vinda do Norte.
Quem sabe mesmo se esta esquerda, na sua multiplicidade e nas suas diferenças, não é susceptível de reconciliar “irmãos inimigos”? Brasília tem excelentes relações com Santiago, mas também com Caracas, onde o presidente Chávez tem laços estreitos com Evo Morales. Ricardo Lagos, ainda presidente do Chile por alguns dias, aceitou a proposta do dirigente indígena: assistir à sua tomada de posse da presidência da República, em 22 de Janeiro. Devido a um velho contencioso territorial, é a primeira vez que um chefe de Estado chileno é convidado para a tomada de posse de um presidente boliviano.
[1] Tendo como países associados, a Bolívia e o Chile (1996), o Peru (2003), a Colômbia, o Equador e a Venezuela (2004).
[2] Fusão do Mercosul e do Pacto Andino, a Comunidade sul‑americana das nações integra a Argentina, a Bolívia, o Brasil, o Chile, a Colômbia, o Equador, a Guiana, o Paraguai, o Peru, o Suriname, o Uruguai, a Venezuela.
Emir Sader
http://www.infoalternativa.org/amlatina/amlatina022.htm
No entanto, ao mesmo tempo que os países da Europa e da América do Norte prosseguiam o seu processo de integração, projectos similares se desenvolviam, muito particularmente na América do Sul. Eles procuravam proteger, ainda que de maneira mínima, as economias da região das consequências negativas da globalização. Nas décadas de 1980 e 1990, surgiram dois projectos antagónicos: de um lado, o Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul), integrando a Argentina, o Brasil, o Uruguai e o Paraguai [1]; do outro, o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), reunindo os Estados Unidos, o Canadá e o México.
Washington tinha a ambição de estender depois progressivamente o NAFTA ao resto do continente. Praticamente no momento em que esta iniciativa foi formalizada, e em que o Chile foi apresentado como o próximo candidato a integrar, a crise mexicana de 1994 levou o Congresso [dos EUA] a não mais autorizar o presidente dos Estados Unidos a recorrer, como os seus predecessores, ao fast track (via rápida) – direito de negociar acordos comerciais com outras nações, podendo os parlamentares posteriormente apenas aceitá‑los ou rejeitá‑los em bloco, sem possibilidade de emendas.
O governo dos Estados Unidos teve então que recorrer a um projecto mais antigo, que tinha ficado na gaveta: a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Encontraram‑se assim frente a frente dois projectos: um exclusivamente latino‑americano, o outro continental. A diferença – substancial – era a participação dos EUA neste último. Representando 70% do Produto Interno Bruto (PIB) do total dos países, eles transformavam a ALCA em ferramenta de consolidação da sua hegemonia, de modo algum em processo de integração.
No entanto, e paralelamente, uma tendência nova se impôs: a evolução ideológica de Hugo Chávez, em Caracas, a chegada ao poder de Luiz Inácio Lula da Silva, em Brasília, de Nestor Kirchner, em Buenos Aires, e, mais tarde, de Tabaré Vázquez, em Montevideo, criaram uma situação inteiramente nova.
A Venezuela, sobretudo depois da vitória de Chávez sobre a oposição no referendo revogatório de 15 de Agosto de 2004, conquistou um espaço político importante e utilizou‑o para redinamizar a lógica de integração. Isso, em particular, por meio de um dispositivo coordenação com os presidentes da Argentina e do Brasil, no qual estavam assim representadas as três principais economias da América do Sul. Uma primeira consequência foi encorajar a realização de reuniões sectoriais entre os ministros do sector energético, das políticas sociais e da economia. Diversos acordos foram assinados em matéria comercial, energética e de defesa. Para dar só um exemplo, Chávez anunciou em 2004 que a Venezuela, que importa para a sua indústria petrolífera 5 mil milhões de dólares de bens e serviços dos Estados Unidos, realizaria, a partir de então, 25% destas compras na Argentina e no Brasil. Ao fazê-lo, ainda que as opções destes difiram sensivelmente da sua perspectiva radical, conquistou aliados de circunstância nestes dois países.
No final de 2005, a Venezuela ingressou como membro pleno no Mercosul. Entretanto, após a vitória eleitoral de Evo Morales em La Paz, o coordenador geral da organização, o argentino Chacho Alvarez, anunciou que proporia a admissão da Bolívia nas mesmas condições. Começava assim a dissipar‑se a dualidade entre o Mercosul e a Comunidade Sul-americana das Nações, nascida por iniciativa do Brasil, em 8 de Dezembro de 2004, em Cuzco (Peru). Esta última era objecto de reservas por parte do governo de Kirchner, mais inclinado a dar prioridade ao alargamento do Mercosul [2]. Foi em Cuzco, durante esta cimeira, que Chávez, na sua linguagem cheia de imagens, sugeriu uma consigna: «A política como locomotiva, o social como bandeira, o económico como trilho e a cultura como combustível».
Ao mesmo tempo, Caracas multiplicou as iniciativas setoriais e desenvolveu uma iniciativa estratégica de aliança com Cuba: a Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA). No documento assinado em Abril de 2005, em Havana, os governos de Cuba e da Venezuela encetam uma forma de integração mais intensa entre economias dispondo já de um nível superior de identificação política. E isso a partir do momento em que – no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em Janeiro de 2005 – Hugo Chavez anunciou que o seu governo inscrevia a sua actuação no que ele designou como o «socialismo do século XXI».
“VANTAGENS COOPERATIVAS”
A ALBA é um projecto de integração que se apoia em mecanismos destinados a criar “vantagens cooperativas”, em vez das pretendidas “vantagens comparativas”, verdadeira antífona das teorias liberais do comércio internacional. As vantagens cooperativas procuram reduzir as assimetrias existentes entre os países do hemisfério. Elas apoiam-se em mecanismos de compensação, a fim de corrigir as disparidades de níveis de desenvolvimento entre uns e outros.
A ALBA pretende ser o contraponto da ALCA. Trata-se de implicar todos os actores económicos e sociais – cooperativas, empresas nacionais, empresas privadas pequenas, médias e grandes – e dar prioridade à resolução dos problemas essenciais das populações: alimentação, alojamento, criação de indústrias, preservação do meio ambiente. A ALCA, em contrapartida, não diferencia entre países grandes e pequenos, entre países dispondo ou não de recursos naturais, financeiros, energéticos ou outros, reforçando assim as dinâmicas que fazem ganhar os mais fortes – neste caso preciso, os Estados Unidos. Além disso, a ALCA pretende impor aos países critérios de segurança jurídica favoráveis às grandes corporações multinacionais, sem se preocupar um instante em ajudar os países mais fracos.
Na ALBA não há subsídios, mas créditos, máquinas e tecnologias para as empresas abandonadas pelos seus proprietários e recuperadas pelos seus trabalhadores; para as cooperativas e as comunidades de pequenos produtores – seja na indústria, no comércio ou nos serviços; e para as empresas públicas. A ALBA recebe o apoio dos Estados em matéria de crédito, assistência técnica e jurídica, de marketing e de comércio internacional, enquanto a ALCA deixa o campo livre às forças que dominam o mercado e às capacidades financeiras dos grandes agentes económicos.
Em Abril de 2005, foram assinados dezenas de acordos entre Caracas e Havana. Nesse momento, foi tomada a decisão de criar na Venezuela seiscentos centros de diagnóstico integral de saúde, seiscentos dispensários e trinta e cinco centros de alta tecnologia, para assegurar ao conjunto da população venezuelana o acesso gratuito à medicina e aos cuidados. Foi igualmente decidida a formação, por Cuba, de quarenta mil médicos e de cinco mil especialistas em tecnologias da saúde latino-americanos, assim como de dez mil médicos e enfermeiros venezuelanos. Do mesmo modo, prosseguiu a operação “Milagre”, que já permitiu a milhares de venezuelanos recuperar plenamente a visão, graças a uma intervenção benigna (a operação da catarata) realizada em Cuba. Ampliada à América latina, esta operação poderia fazer chegar o número dos beneficiários a cem mil – 800 uruguaios já beneficiaram.
Pela sua parte, a Venezuela decidiu abrir em Havana uma agência da empresa petrolífera nacional PDVSA, bem como uma sucursal do Banco Industrial da Venezuela. Os dois governos concederam preferências aduaneiras recíprocas para as suas trocas comerciais. Cuba decidiu adquirir 412 milhões de dólares em produtos venezuelanos, o que poderia suscitar a criação de dezenas de milhares de empregos no país parceiro – oferecendo um balão de oxigénio à sua economia em fraco estado.
Se o “eixo estratégico” Caracas‑Havana é alvo das críticas dos sectores conservadores, que não gostam de ver Cuba sair do seu isolamento, o desenvolvimento destas políticas de saúde, de que estavam desprovidos, é acompanhado com o maior interesse pelos movimentos sociais do conjunto do sub‑continente. Estas trocas constituem bons exemplos de comércio “justo” ou equitativo: cada país oferece o que pode produzir em boas condições, e recebe, em contrapartida, aquilo que precisa, independentemente dos preços no mercado mundial.
Uma abordagem radicalmente diferente da dos acordos bilaterais assinados por Washington com os países do hemisfério – entre eles os da América Central, o Chile, o Uruguai, o Peru e, proximamente, a Colômbia –, cujo resultado é acentuar as desigualdades, e graças aos quais os EUA, pelo seu peso determinante, consolidam posições que já lhes são estruturalmente favoráveis.
Antes mesmo da sua posse em La Paz, no último 22 de Janeiro, o novo presidente da Bolívia, Evo Morales, começou por Havana e Caracas um périplo ao estrangeiro que poderia abrir caminho a uma integração da Bolívia na ALBA. Algum tempo antes, tinha sido criada a Petrocaribe, empresa destinada a oferecer a onze países do Caribe petróleo a preços reduzidos, com facilidades de pagamento. Esta iniciativa do governo de Chávez procurava permitir aos países da região precaverem-se contra a volatilidade e a escalada de preços do petróleo no mercado internacional, aliviando-os parcialmente da pressão exercida por Washington para lhes impor acordos bilaterais.
UMA TENTATIVA AMBICIOSA
Ainda em estado embrionário, e sem prejulgar o seu sucesso, a ALBA constitui uma tentativa ambiciosa de integração regional que escapa à lógica do mercado. Mas as dificuldades não faltarão, porque deve envolver igualmente países como a Argentina, o Brasil e o Uruguai, provavelmente o México e talvez o Peru. As economias destes países são dominadas por empresas multinacionais, muito mais interessadas na manutenção da sua fatia de mercado nos Estados Unidos e na Europa, do que num tipo de integração que pode privá‑las destas facilidades.
Os presidentes destas nações experimentam mesmo as maiores dificuldades para avançar no âmbito bem menos ambicioso do Mercosul. Testemunham‑no os numerosos conflitos entre os sectores patronais do Brasil e da Argentina, que sabotam este processo de integração. Na verdade, a ALBA só pode realizar‑se entre governos decididos a desenvolver um projecto estratégico de grandes transformações estruturais internas, de maneira que as decisões que tomam envolvam efectivamente a economia dos seus países.
Ainda assim, algumas iniciativas emergem, preliminares de uma aliança entre países do continente. Como exemplos (seguramente, não exaustivos)... Chávez confirmou o investimento de 600 milhões de dólares da PDVSA – a companhia petrolífera nacional da Venezuela – no Uruguai, onde trabalhará com a sua homóloga, ANCAP, especializada na refinação. Além disso, foi assinado um acordo entre Caracas e Brasília para a construção de uma importante refinaria no Nordeste brasileiro. Reunidos em 18 de Janeiro, os presidentes Kirchner e Lula examinaram o projecto de construção de um oleoduto que, partindo da Venezuela, chegaria até à Argentina, passando pelo território brasileiro. A criação de uma grande companhia petrolífera sul‑americana, a Petrosul, talvez não seja apenas um sonho vazio...
A Telesur já funciona. Tendo como accionistas a Argentina, Cuba, o Uruguai e a Venezuela, esta cadeia de televisão procura fornecer informação latino-americana fora dos padrões das TVs privadas e da influência mediática vinda do Norte.
Quem sabe mesmo se esta esquerda, na sua multiplicidade e nas suas diferenças, não é susceptível de reconciliar “irmãos inimigos”? Brasília tem excelentes relações com Santiago, mas também com Caracas, onde o presidente Chávez tem laços estreitos com Evo Morales. Ricardo Lagos, ainda presidente do Chile por alguns dias, aceitou a proposta do dirigente indígena: assistir à sua tomada de posse da presidência da República, em 22 de Janeiro. Devido a um velho contencioso territorial, é a primeira vez que um chefe de Estado chileno é convidado para a tomada de posse de um presidente boliviano.
[1] Tendo como países associados, a Bolívia e o Chile (1996), o Peru (2003), a Colômbia, o Equador e a Venezuela (2004).
[2] Fusão do Mercosul e do Pacto Andino, a Comunidade sul‑americana das nações integra a Argentina, a Bolívia, o Brasil, o Chile, a Colômbia, o Equador, a Guiana, o Paraguai, o Peru, o Suriname, o Uruguai, a Venezuela.
Emir Sader
http://www.infoalternativa.org/amlatina/amlatina022.htm
Sem comentários:
Enviar um comentário