sexta-feira, setembro 01, 2006

Guerra contra o terror

Palestra anual da Amnistia Internacional, no Trinity College


“Terror” é um termo que desperta com razão emoções fortes e preocupações profundas. A principal preocupação deveria, naturalmente, ser a adopção de medidas para mitigar a ameaça, que foi grave no passado, e sê‑lo­­­‑á ainda mais no futuro. Para proceder de uma forma séria, temos de estabelecer algumas directrizes. Aqui vão algumas simples:

(1) Os factos importam, mesmo que não nos agradem.
(2) Os princípios morais elementares importam, mesmo que tenham consequências que preferiríamos não enfrentar.
(3) A clareza relativa importa. Não faz sentido procurar uma definição realmente precisa de “terror”, ou de qualquer outro conceito fora das ciências experimentais e da matemática, e com frequência até aí. Mas deveríamos procurar clareza suficiente para pelo menos distinguir a noção de terror de duas noções que se situam desconfortavelmente nos seus limites: agressão e resistência legítima.

Se aceitamos estas directrizes, há caminhos muito construtivos para abordar os problemas do terrorismo, que são muito graves. Alega-se habitualmente que os críticos das políticas actuais não apresentam soluções. Verifiquem o registo e penso que descobrirão que há uma tradução fiel dessa acusação: “Apresentam soluções, mas não me agradam”.
Suponham, pois, que aceitamos estas simples directrizes. Voltemos à “Guerra contra o terror”. Uma vez que os factos importam, importa que a guerra não tenha sido declarada por George W. Bush no 11-S, mas pela administração Reagan 20 anos antes. Chegaram ao poder afirmando que a sua política externa enfrentaria o que o presidente denominou «o diabólico flagelo do terrorismo», uma praga disseminada por «depravados adversários da própria civilização» num «regresso ao barbarismo na idade moderna» (secretário de estado George Shultz). A campanha foi direccionada para uma forma particularmente virulenta de praga: o terrorismo internacional dirigido a partir do estado. O foco principal foi a América Central e o Médio Oriente, mas atingiu o sul de África, o Sudeste Asiático e outros.
Um segundo facto é que a guerra foi declarada e implementada por praticamente as mesmas pessoas que estão a conduzir a re­­‑declarada guerra contra o terrorismo. A componente civil da re­­‑declarada guerra contra o terror é dirigida por John Negroponte, nomeado o ano passado para supervisionar todas as operações de contraterrorismo. Como embaixador nas Honduras, foi o director de serviço da maior operação da primeira Guerra contra o Terror, a guerra dos Contra contra a Nicarágua, lançada sobretudo de bases dos EUA nas Honduras. Voltarei a algumas das suas tarefas. A componente militar da re­‑declarada guerra dirigida por Donald Rumsfeld. Durante a primeira fase da Guerra contra o Terror, Rumsfeld foi o representante especial de Reagan para o Médio Oriente. Ali, a sua principal tarefa foi estabelecer estreitas relações com Saddam Hussein para que os EUA pudessem proporcionar-lhe ajuda a grande escala, incluindo meios para desenvolver armas de destruição em massa, prosseguindo muito depois das enormes atrocidades contra os curdos e o fim da guerra com o Irão. O propósito oficial, não dissimulado, era a responsabilidade de Washington de ajudar os exportadores norte­‑americanos e «o ponto de vista impressionantemente unânime» de Washington e seus aliados Grã­‑Bretanha e Arábia Saudita de que «quaisquer que fossem os pecados do dirigente iraquiano, ele oferecia ao Ocidente e à região uma melhor esperança para a estabilidade do seu país do aqueles que sofriam a sua repressão» – Alan Cowell, correspondente no Médio Oriente do New York Times, descrevendo o critério de Washington quando George Bush I autorizou Saddam a esmagar a rebelião xiita de 1991, que provavelmente teria derrocado o tirano.
Saddam está a ser finalmente processado pelos seus crimes. O primeiro processo, agora em curso, é por crimes cometidos em 1982. Acontece que 1982 é um ano importante nas relações entre EUA­‑Iraque. Foi em 1982 que Reagan tirou o Iraque da lista de estados que apoiavam o terrorismo a fim de que a ajuda pudesse fluir para o seu amigo em Bagdade. Rumsfeld visitou então Bagdade para confirmar as disposições. Ajuizando pelas reportagens e comentários, seria indelicado mencionar qualquer destes factos, quanto mais sugerir que alguns outros poderiam estar ao lado de Saddam ante a barra da justiça. Tirar Saddam da lista de estados que apoiavam o terrorismo deixou um vazio. Foi imediatamente preenchido com Cuba, talvez em reconhecimento do facto de que as guerras terroristas dos EUA contra Cuba desde 1961 tinham acabado de chegar ao seu auge, incluindo acontecimentos que estariam nas primeiras páginas neste momento em sociedades que valorizassem a sua liberdade, ao que voltarei em breve. De novo, isso diz­‑nos algo sobre as reais atitudes da elite frente à praga da idade moderna.
Como a primeira Guerra contra o Terror foi empreendida por aqueles que agora conduzem a guerra re­‑declarada, ou pelos seus imediatos mentores, segue­‑se que qualquer pessoa seriamente interessada na re­‑declarada Guerra contra o Terror deveria perguntar imediatamente como foi conduzida nos anos 1980. O tópico, no entanto, está praticamente proibido. Isso torna­‑se compreensível logo que investigamos os factos: a primeira Guerra contra o Terror rapidamente se tornou numa guerra terrorista brutal e assassina, em todos os rincões do mundo onde chegou, deixando sociedades traumatizadas que podem nunca mais recuperar. O que aconteceu é dificilmente obscuro, mas doutrinalmente inaceitável, logo protegido do escrutínio. Desenterrar o registo é um exercício esclarecedor, com enormes implicações o futuro.
Estes são alguns dos factos relevantes, e eles definitivamente importam. Voltemo­‑nos para a segunda das directrizes: os princípios morais básicos. O mais básico de todos é praticamente um axioma: as pessoas decentes aplicam a si próprias as mesmas normas que aplicam aos outros, se não mais estritas ainda. A adesão a este princípio de universalidade teria muitas consequências úteis. Para começar, salvar­‑se­‑iam muitas árvores. O princípio reduziria radicalmente a informação publicada e os comentários a respeito de assuntos políticos e sociais. Eliminaria praticamente a nova disciplina da moda da teoria da Guerra Justa. E deixaria quase limpo o quadro no que diz respeito à Guerra contra o Terror. A razão é a mesma em todos os casos: o princípio de universalidade é rejeitado, na maior parte das vezes tacitamente, embora algumas vezes explicitamente. Estas afirmações são muito generalizadas. Expu­‑las propositadamente de forma crua para vos convidar a desafiá­‑las, e espero que o façam. Creio que descobrirão que, ainda que as afirmações estejam algo enfatizadas – propositadamente - elas estão, no entanto, desconfortavelmente próximas da certeza e, de facto, profusamente documentadas. Mas tentem vocês mesmos e verão.
Este mais elementar dos axiomas morais é por vezes defendido, pelo menos em palavras. Um exemplo, de importância crucial hoje em dia, é o Tribunal de Nuremberg. Ao sentenciar os criminosos de guerra nazis à morte, o juiz Robert Jackson, o Chefe dos Procuradores dos EUA, falou de forma eloquente e memorável sobre o princípio de universalidade. «Se certos actos de violação de tratados são crimes», disse, «são crimes quer sejam cometidos pelos EUA quer pela Alemanha, e não estamos preparados para estabelecer uma norma de conduta criminosa contra outros que não estaríamos dispostos a ver invocada contra nós… Nunca devemos esquecer que os antecedentes sobre os quais julgamos estes acusados são os antecedentes com base nos quais a história nos julgará a nós amanhã. Apresentar a estes acusados um cálice envenenado é também pô-lo nos nossos próprios lábios».
Esta é uma clara e honorável afirmação do princípio de universalidade. Mas o próprio julgamento de Nuremberg violou de forma decisiva este princípio. O Tribunal tinha que definir “crime de guerra” e “crimes contra a humanidade”. Concebeu estas definições cuidadosamente para que os crimes só fossem considerados criminosos se não fossem cometidos pelos aliados. Os bombardeamentos de concentrações de civis nas urbes foram excluídos, porque os aliados tinham­‑nos levado a cabo de forma mais bárbara do que os nazis. E criminosos de guerra nazis, como o Almirante Doenitz, puderam alegar com sucesso que seus homólogos britânicos e estadunidenses tinham desenvolvido as mesmas acções. O raciocínio foi sublinhado por Telford Taylor, um distinto advogado internacional que foi chefe dos procuradores de Jackson para Crimes de Guerra. Explicou que «castigar o inimigo – especialmente o inimigo derrotado – por condutas empreendidas pela nação que impõe, seria tão extremamente injusto que desacreditaria as próprias leis». Isso é correcto, mas a definição operativa de “crime” também desacredita as próprias leis. Tribunais posteriores estão desacreditados pela mesma falha moral, mas a auto­‑isenção dos poderosos do direito internacional e dos elementares princípios morais vai além deste exemplo, e atinge quase todos os aspectos das duas fases da Guerra contra o Terror.
Voltemos ao terceiro tema de fundo: definir “terror” e distingui-lo de agressão e resistência legítima. Tenho vindo a escrever sobre o terror durante 25 anos, desde que a administração Reagan declarou a sua Guerra contra o Terror. Tenho vindo a utilizar definições que parecem ser duplamente apropriadas: em primeiro lugar, fazem sentido; e em segundo, são as definições oficiais daqueles que empreendem a guerra. Tomando uma dessas definições oficiais, terrorismo é «o uso calculado da violência ou da ameaça de violência para conseguir objetivos que são de natureza política, religiosa ou ideológica… mediante a intimidação, a coacção ou inculcando temor», tipicamente sobre alvos civis. A definição do governo britânico é parecida: «Terrorismo é o uso, ou ameaça, ou acção, que é violenta, causa danos ou perturba, e que pretende influenciar o governo ou intimidar o público e tem o propósito de fazer avançar uma causa política, religiosa ou ideológica». Estas definições parecem razoavelmente claras e próximas do uso ordinário. Também parece que há acordo geral em que são adequadas quando se trata do terrorismo dos inimigos.
Mas, imediatamente, aflora um problema. Estas definições produzem uma consequência completamente inaceitável: resulta que os EUA são um destacado estado terrorista, de modo dramático durante a guerra reaganita contra o terror. Para referir simplesmente o caso mais incontroverso, a guerra de terrorismo de estado dirigida por Reagan contra a Nicarágua foi condenada pelo Tribunal Internacional, com apoio de duas resoluções do Conselho de Segurança (vetadas pelos EUA, com a Grã­‑Bretanha abstendo­‑se educadamente). Outro caso completamente claro é o de Cuba, onde os registos são agora volumosos, e não controversos. E há uma longa lista além desses.
Podemos, no entanto, perguntar se tais crimes, como o ataque de estado contra a Nicarágua, são realmente terrorismo, ou se se elevam ao nível do crime bem mais grave de agressão. O conceito de agressão foi definido de forma suficientemente clara pelo Juiz Jackson em Nuremberg em termos que foram basicamente reiterados numa autorizada resolução da Assembleia Geral. Um «agressor», propôs Jackson ao Tribunal, é um estado que é o primeiro a cometer acções tais como «invasão pelas suas forças armadas, com ou sem uma declaração de guerra, do território de outro Estado», ou «Prestação de apoio a bandas armadas formadas no território de outro Estado, ou recusa, apesar da solicitação do Estado invadido, de adoptar no seu próprio território todas as medidas na sua mão para privar essas bandas de qualquer ajuda ou protecção». A primeira provisão aplica­‑se sem ambiguidade à invasão anglo­‑estadunidense do Iraque. A segunda, de forma igualmente clara, aplica­‑se à guerra dos EUA contra a Nicarágua. No entanto, poderíamos conceder aos actuais detentores do poder em Washington e aos seus mentores o benefício da dúvida, considerando-os culpados só do crime menor de terrorismo internacional, a uma escala imensa e sem precedentes.
Também pode ser recordado que em Nuremberg a agressão foi definida como «o supremo crime internacional, diferenciando­‑se de outros crimes de guerra por conter em si mesmo o mal acumulado do todo» – todo o mal que na torturada terra do Iraque resultou da invasão anglo-estadunidense, por exemplo, e também na Nicarágua, se a acusação não for reduzida ao terrorismo internacional. E no Líbano, e em todas as outras demasiadas vítimas que são facilmente despachadas sob o pretexto de acção equivocada – até ao presente. Há uma semana (13 de Janeiro), um avião de combate controlado à distância atacou uma aldeia no Paquistão, assassinando dúzias de civis, famílias inteiras, que tão só viviam num suposto esconderijo da Al Qaeda. Essas acções rotineiras suscitam pouca atenção, um legado do envenenamento da cultura moral por séculos de criminalidade imperial.
O Tribunal Internacional não aceitou a acusação de agressão no caso da Nicarágua. As razões são instrutivas e de enorme relevância contemporânea. O caso da Nicarágua foi apresentado pelo distinto professor de Direito da Universidade de Harvard Abram Chayes, antigo conselheiro legal no Departamento de Estado. O Tribunal recusou uma grande parte do seu caso pelo motivo de que, ao aceitar a jurisdição do Tribunal Internacional em 1946, os EUA tinham introduzido uma reserva excluindo­‑se a si próprios de processamento com base em tratados multilaterais, incluindo a Carta da ONU. O Tribunal, portanto, restringiu as suas deliberações ao direito internacional costumário e a um tratado bilateral Nicarágua-EUA, de modo que as acusações mais graves foram excluídas. Mesmo neste terreno tão estreito, o Tribunal acusou Washington de «uso ilícito de força» – em linguagem de leigo, terrorismo internacional – e ordenou­‑lhe que pusesse termo aos crimes e a pagar substanciais compensações. Os reaganitas reagiram mediante uma escalada da guerra, aprovando também oficialmente ataques das suas forças terroristas contra “alvos suaves”, alvos civis indefesos. A guerra terrorista deixou o país em ruínas, com um saldo total de vítimas equivalente nos EUA em termos per capita a 2,25 milhões, mais do que o total de todas as vítimas de guerra na história dos EUA. Depois de o destroçado país ter voltado a cair sob o controle dos EUA, declinou para uma situação de ainda maior miséria. É agora o segundo país mais pobre da América Latina depois do Haiti – e, por acaso, também o segundo depois do Haiti na intensidade da intervenção dos EUA durante o século passado. A forma habitual de lamentar estas tragédias é dizer que o Haiti e a Nicarágua são «arrasados por tormentas que eles mesmos criaram», para citar o Boston Globe, no extremo liberal do jornalismo americano. A Guatemala figura no terceiro lugar tanto em miséria como em intervenção, mais tormentas de sua própria criação.
No cânon ocidental, nada disto existe. Tudo está excluído não só dos comentários e da história em geral, mas também, eloquentemente, da imensa literatura sobre a Guerra contra o Terror re­‑declarada em 2001, ainda que a sua relevância dificilmente possa ser posta em dúvida.
Estas considerações têm a ver com a fronteira entre terror e agressão. E quanto à fronteira entre terror e resistência? Uma das questões que se levantam é a legitimidade das acções para conseguir «o direito à autodeterminação, liberdade, e independência, como decorre da Carta das Nações Unidas, de pessoas privadas à força desse direito..., particularmente pessoas sob regimes coloniais e racistas e ocupação estrangeira…» Caem essas acções sob o conceito de terror ou de resistência? As palavras citadas provêm da denúncia mais enérgica do crime de terrorismo da Assembleia Geral da ONU; em Dezembro de 1987, assumida sob pressão reaganita. Por isso é, obviamente, uma resolução importante, ainda mais por causa da quase unanimidade do apoio prestado. A resolução foi aprovada, por 153­‑2 (só as Honduras se absteve). Afirmava que «nada na presente resolução poderá de alguma forma prejudicar o direito à autodeterminação, liberdade e independência», como caracterizadas nas palavras citadas.
Os dois países que votaram contra a resolução explicaram as suas razões na sessão da ONU. Basearam­‑se no parágrafo acabado de citar. A frase «regimes coloniais e racistas» foi entendida como referindo­‑se ao seu aliado, a África do Sul do apartheid, que então consumava os seus massacres nos países vizinhos e prosseguia a sua brutal repressão internamente. Evidentemente, os EUA e Israel não podiam admitir a resistência ao regime do apartheid, especialmente quando era dirigida pelo ANC de Nelson Mandela, um dos «grupos terroristas mais destacados» do mundo, como Washington determinou na mesma época. Conceder legitimidade à resistência contra a «ocupação estrangeira» era também inaceitável. A frase foi entendida como referindo­‑se à ocupação militar israelita apoiada pelos EUA, então no seu 20º ano. Evidentemente, a resistência a essa ocupação também não podia ser admitida, embora na época da resolução mal existisse: apesar das extensas torturas, degradação, brutalidade, roubo de terra e recursos, e outras concomitâncias familiares da ocupação militar, os palestinianos sob ocupação continuavam a ser “samidin”, aqueles que suportavam silenciosamente.
Tecnicamente, não há vetos na Assembleia Geral. No mundo real, um voto negativo dos EUA é um veto, de facto um veto duplo: a resolução não é implementada, e é vetada da informação e da história. Deveria acrescentar­­­‑se que o padrão de votação é muito comum na Assembleia Geral, e também no Conselho de Segurança, num gama ampla de questões. Desde meados da década de 1960, quando o mundo escapou em boa parte de controle, os EUA estão de longe à frente nos vetos no Conselho de Segurança, a Grã-Bretanha em segundo, sem nenhum outro sequer próximo. Tem também algum interesse assinalar que uma maioria do povo americano é partidária do abandono do veto e de seguir a vontade da maioria mesmo se Washington desaprovar, factos praticamente desconhecidos nos EUA, ou suponho que também noutros lugares. Isso sugere outra forma conservadora de abordar alguns dos problemas mundiais: prestar atenção à opinião pública.
O terrorismo dirigido ou apoiado pelos estados mais poderosos continua até ao presente, frequentemente de modos chocantes. Estes factos oferecem uma útil sugestão sobre como mitigar a praga propagada por «depravados adversários da própria civilização» num «regresso ao barbarismo na idade moderna»: parar de participar no terrorismo e de o apoiar. Isso contribuiria certamente para as objecções proclamadas. Mas essa sugestão também está fora da agenda, pelas razões usuais. Quando é invocada em alguma ocasião, a reacção é reflexiva: uma diatribe sobre como aqueles que fazem esta proposta um tanto conservadora estão a culpar de tudo os EUA.
Mesmo com um cuidadoso saneamento da discussão, os dilemas surgem constantemente. Muito recentemente aflorou um quando Luis Posada Carriles entrou de forma ilegal nos EUA. Mesmo pela estreita definição operativa de “terror”, ele é claramente um dos mais célebres terroristas internacionais, dos anos 1960 até ao presente. A Venezuela solicitou que fosse extraditado para enfrentar acusações por ter feito explodir com uma bomba um avião de Cubana de Aviación na Venezuela, matando 73 pessoas. As acusações são admitidamente credíveis, mas há uma dificuldade real. Depois de Posada ter escapado miraculosamente de uma prisão venezuelana, informou o liberal Boston Globe, ele «foi contratado por operacionais encobertos dos EUA para dirigir a operação de reabastecimento dos contra nicaraguanos a partir de El Salvador» – isto é, para desempenhar um papel proeminente em atrocidades terroristas que são incomparavelmente piores do que fazer explodir o avião de Cubana de Aviación. Daí o dilema. Para citar a imprensa: «Extraditá­‑lo para ser julgado poderia enviar um sinal preocupante aos agentes estrangeiros encobertos de que não podem contar com a protecção incondicional do governo dos EUA, e poderia expor a CIA a revelações públicas vergonhosas por parte de um anterior operacional». Evidentemente, um problema difícil.
O dilema Posada foi, afortunadamente, resolvido pelos tribunais, que rejeitaram a solicitação da Venezuela para a sua extradição, em violação do tratado de extradição EUA­‑Venezuela. Um dia depois, o director do FBI, Robert Mueller, instou a Europa a acelerar os pedidos de extradição dos EUA: «Estamos sempre a tentar ver como podemos agilizar o processo de extradição», disse. «Pensamos que o devemos às vítimas do terrorismo zelar para que a justiça seja feita de forma eficiente e efectiva». Pouco depois, na Cimeira Ibero­‑americana, os dirigentes de Espanha e dos países latino­‑americanos «apoiaram os esforços da Venezuela para que [Posada] fosse extraditado dos EUA para enfrentar julgamento» pelo bombardeamento do avião de Cubana de Aviación, e de novo condenaram o «bloqueio» de Cuba pelos EUA, endossando as quase unânimes resoluções regulares da ONU, a mais recente com uma votação de 179­‑4 (EUA, Israel, Ilhas Marshall, Palau). Depois de fortes protestos da Embaixada dos EUA, a Cimeira retirou o apelo à extradição, mas negou­‑se a ceder na exigência de um fim da guerra económica. Pousada é portanto livre de se juntar ao seu colega Orlando Bosch em Miami. Bosch está implicado em dúzias de crimes terroristas, incluindo a explosão do avião de Cubana de Aviación, muitos deles em solo estadunidense. O FBI e o Departamento de Justiça queriam que fosse deportado por constituir uma ameaça à segurança nacional, mas Bush I tratou disso concedendo­‑lhe um perdão presidencial.
Há outros exemplos desse tipo. Poderemos querer tê-los em mente quando lemos o pronunciamento apaixonado de Bush II de que «os Estados Unidos não distinguem entre aqueles que cometem actos de terror e aqueles que os apoiam, porque são igualmente culpados de assassinato», e «o mundo civilizado deve chamar esses regimes à responsabilidade». Isto foi proclamado com grandes aplausos no National Endowment for Democracy, uns quantos dias depois de o pedido de extradição da Venezuela ter sido recusado. Os comentários de Bush põem outro dilema. Ou os EUA são parte do mundo civilizado, e devem enviar a força aérea dos EUA bombardear Washington; ou declaram­‑se a si mesmos como estando fora do mundo civilizado. A lógica é impecável, mas felizmente, a lógica foi despachada tão fundo para o buraco da memória como os princípios morais.
A doutrina de Bush de que «aqueles que albergam terroristas são tão culpados como os próprios terroristas» foi promulgada quando os talibãs pediram provas antes de entregar pessoas que os EUA consideravam suspeitas de terrorismo – sem provas credíveis, como o FBI admitiu muitos meses mais tarde. A doutrina é tomada muito a sério. Graham Allison, especialista em relações internacionais de Harvard, escreve que «já se tornou numa norma de facto das relações internacionais», revogando «a soberania de estados que proporcionam santuário a terroristas». Isto é, alguns estados, graças à rejeição do princípio de universalidade.

Também poderíamos ter pensado que um dilema seria suscitado quando John Negroponte foi nomeado para o posto de chefe do contra­‑terrorismo. Como Embaixador nas Honduras durante os anos 1980, esteve à frente da maior estação da CIA do mundo, não por causa do grande papel desempenhado pelas Honduras nos assuntos mundiais, mas porque as Honduras eram a principal base dos EUA na guerra terrorista internacional pela qual Washington foi condenado pelo Tribunal Internacional de Justiça e pelo Conselho de Segurança (ausente o veto). Conhecido nas Honduras como “o Procônsul”, Negroponte tinha a missão de assegurar que as operações terroristas internacionais, que atingiram níveis notáveis de selvajaria, prosseguiriam eficientemente. As suas responsabilidades na gestão da guerra no terreno tomaram uma nova direcção depois de o financiamento oficial ter sido barrado em 1983, e de ele ter de implementar ordens da Casa Branca para subornar e pressionar generais hondurenhos de topo para que aumentassem o seu apoio à guerra terrorista utilizando fundos procedentes de outras fontes, mais tarde fundos transferidos ilegalmente da venda de armas dos EUA ao Irão. O mais vicioso dos assassinos e torturadores hondurenhos foi o general Alvarez Martínez, o chefe das forças armadas hondurenhas naquela época, que tinha informado os EUA de que «tencionava usar o método argentino de eliminar suspeitos de subversão». Negroponte negou regularmente horríveis crimes de estado nas Honduras para assegurar que a ajuda militar continuaria a fluir para o terrorismo internacional. Sabendo tudo sobre Alvarez, a administração Reagan concedeu­‑lhe a medalha da Legião de Mérito por «encorajar o sucesso dos processos democráticos nas Honduras». A unidade de elite responsável pelos piores crimes nas Honduras foi o Batalhão 3­‑16, organizado e treinado por Washington e os seus sócios neo­‑nazis argentinos. Os oficiais militares hondurenhos a cargo do Batalhão figuravam na lista de pagamentos da CIA. Quando o governo das Honduras tentou finalmente lidar com estes crimes e levar os perpretadores à justiça, a administração Reagan-Bush recusou­‑se a permitir que Negroponte testemunhasse, como o tribunal solicitou.
Não houve praticamente reacção à nomeação de um importante terrorista internacional para o posto mais importante do contra­‑terrorismo no mundo. Nem ao facto de que, ao mesmo tempo, a heroína da luta popular que derrocou o atroz regime de Somoza na Nicarágua, Dora María Téllez, viu ser­‑lhe negado um visto para ensinar na Harvard Divinity School, como uma terrorista. O seu crime foi ter ajudado a derrocar um tirano e assassino em massa apoiado pelos EUA. Orwell não teria sabido se chorar ou rir.
Até agora tenho-me restringido ao tipo de tópicos que seriam abordados numa discussão sobre a Guerra contra o Terror que não fosse deformada para se ajustar às leis de ferro da doutrina. E isto mal arranha a superfície. Mas adoptemos agora a hipocrisia e cinismo ocidentais predominantes, e cinjamo­‑nos à definição operativa de “terror”. É idêntica às definições oficiais, mas com a excepção de Nuremberg: terror admissível é o vosso terror; o nosso está isento.
Mesmo com esta restrição, o terror é um problema importante, sem dúvida. E mitigar ou acabar com essa ameaça deveria ser uma prioridade absoluta. Lamentavelmente, não o é. Tudo isso é demasiado fácil de demonstrar, e é provável que as consequências sejam severas.
A invasão do Iraque é talvez o exemplo mais notório da baixa prioridade atribuída pelos dirigentes anglo­‑estadunidenses à ameaça do terrorismo. Os planificadores de Washington tinham sido advertidos, inclusive através das suas próprias agências de inteligência, que era provável que a invasão aumentasse o risco do terrorismo. E assim foi, como as suas próprias agências de inteligência o confirmam. O Conselho Nacional de Inteligência informou há um ano que «o Iraque e outros possíveis conflitos no futuro poderiam proporcionar recrutamento, campos de treinamento, capacidades técnicas e competências em línguas para uma nova classe de terroristas que são “profissionalizados” e para quem a violência política se torna um fim em si mesma», disseminando­‑se noutras partes para defender as terras muçulmanas dos ataques de «invasores infiéis» numa rede globalizada de «difusos grupos extremistas islâmicos», com o Iraque substituindo agora os campos de treinamento afegãos para essa rede mais extensa, como resultado da invasão. Um exame governamental de alto nível da “guerra contra o terror” dois anos depois da invasão «centrou­‑se em como lidar com a ascensão de uma nova geração de terroristas, instruídos no Iraque ao longo dos dois últimos anos. Altos funcionários governamentais estão a voltar crescentemente a sua atenção para a antecipação do que um chamou “a sangria” de centenas ou milhares de jihadistas treinados no Iraque regressando aos seus países de origem através do Médio Oriente e da Europa Ocidental. “É um novo elemento de uma nova equação”, disse um antigo responsável sénior da administração Bush. “Se não sabemos quem eles são no Iraque, como vamos localizá-los em Istambul ou Londres?”» (Washington Post).
Em Maio passado, a CIA informou que «o Iraque tornou­‑se num íman para os militantes islâmicos de forma parecida ao Afeganistão ocupado pelos soviéticos de há duas décadas e à Bósnia na década de 1990», de acordo com responsáveis estadunidenses citados no New York Times. A CIA concluiu que «o Iraque pode provar ser um campo de treinamento para extremistas islâmicos ainda mais eficaz do que foi o Afeganistão nos primeiros tempos da Al Qaeda, porque está a servir como um verdadeiro laboratório mundial para o combate urbano». Pouco depois das bombas de Londres em Julho passado, a Chatham House publicou um estudo que concluía que «“não há dúvida” de que a invasão do Iraque “deu um impulso à rede Al Qaeda” em propaganda, recrutamento e angariação de fundos, enquanto proporcionava uma área ideal de treinamento aos terroristas»; e que «o Reino Unido está em risco particular porque é o aliado mais próximo dos EUA» e vai «na garupa da política americana» no Iraque e no Afeganistão.
Há extensas provas de suporte para mostrar que – como antecipado – a invasão aumentou o risco de terrorismo e proliferação nuclear. Nada disto mostra, claro, que os planificadores preferem estas consequências. Mostram, em vez disso, que não são motivo de grande preocupação em comparação com prioridades muito mais importantes que só são obscuras para aqueles que preferem o que os investigadores em direitos humanos por vezes chamam “ignorância deliberada”.
Uma vez mais encontramos, muito facilmente, uma via para reduzir a ameaça do terrorismo: parar de actuar de modos que – previsivelmente – aumentam a ameaça.
Embora o aumento da ameaça do terror e da proliferação tenha sido antecipado, a invasão fê­‑lo inclusive em modos não antecipados. É comum dizer-se que não foram encontradas ADM [armas de destruição maciça] no Iraque depois de uma busca exaustiva. No entanto, isso não é muito exacto. Havia depósitos de ADM no Iraque: nomeadamente, aquelas produzidas nos anos 1980, graças à ajuda proporcionada pelos EUA e pela Grã­‑Bretanha, juntamente com outros. Esses lugares tinham sido securizados pelos inspectores da ONU, que estavam a desmantelar as armas. Mas os inspectores foram dispensados pelos invasores e os lugares ficaram sem vigilância. Ainda assim, os inspectores continuaram a levar a cabo o seu trabalho com imagens via satélite. Descobriram um sofisticado saque em massa destas instalações nuns 100 lugares, incluindo equipamento para produzir mísseis a propulsão sólida e líquida, bio­toxinas e outras substâncias utilizáveis para armas químicas e biológicas, e equipamento de alta precisão capaz de construir partes para mísseis e armas químicas e nucleares. Um jornalista jordano foi informado por responsáveis encarregados da fronteira jordano­‑iraquiana que, depois de as forças anglo­‑estadunidenses terem ocupado o país, foram detectados materiais radioactivos em um de cada oito camiões que cruzavam para a Jordânia, com destino desconhecido.
As ironias são quase inexprimíveis. A justificação oficial para a invasão anglo­‑estadunidense foi impedir o uso de ADM que não existiam. A invasão proporcionou aos terroristas que se tinham mobilizado, devido aos EUA e seus aliados, os meios para desenvolver ADM – nomeadamente, equipamento que eles tinham proporcionado a Saddam, em nada se preocupando com os terríveis crimes que mais tarde evocaram para galvanizar apoio para a invasão. É como se o Irão estivesse agora a fazer armas nucleares utilizando materiais de fissão proporcionados pelos EUA ao Irão sob o Xá – o que pode certamente acontecer. Programas para recuperar e securizar tais materiais estavam a ter um sucesso considerável nos anos 90, mas tal como a guerra contra o terror, esses programas caíram vítimas das prioridades da administração Bush enquanto eles dedicavam a sua energia e recursos a invadir o Iraque.
Em outros lugares do Médio Oriente também o terror é considerado como secundário frente a assegurar que a região está sob controle. Outro exemplo é a imposição de Bush de novas sanções à Síria em Maio de 2004, implementando a Lei de Responsabilidade da Síria aprovada pelo Congresso uns quantos meses antes. A Síria está na lista oficial de estados que patrocinam o terrorismo, apesar do reconhecimento de Washington de que a Síria não tem estado implicada em actos terroristas há muitos anos e tem sido bastante cooperante em proporcionar dados importantes de inteligência a Washington sobre a Al Qaeda e outros grupos islamitas radicais. A gravidade da preocupação de Washington acerca dos vínculos da Síria com o terrorismo foi revelada pelo Presidente Clinton quando ofereceu tirar a Síria da lista de estados patrocinadores do terrorismo se concordasse com as condições de paz israelo-estadunidenses. Quando a Síria insistiu em recuperar o seu território ocupado, permaneceu na lista. A implementação da Lei de Responsabilidade da Síria privou os EUA de uma importante fonte de informação sobre o terrorismo islamita radical para atingir o objectivo mais importante de estabelecer na Síria um regime que aceite as exigências israelo-estadunidenses.
Voltando a outro âmbito, o Departamento do Tesouro tem um escritório (OFAF, Escritório de Controle de Activos Estrangeiros) que tem atribuída a tarefa de investigar as transferências financeiras suspeitas, um elemento central da “guerra contra o terror”. Em Abril de 2004, a OFAC informou o Congresso que dos seus 120 empregados, quatro estavam dedicados a seguir a pista das finanças de Osama bin Laden e Saddam Hussein, enquanto quase duas dúzias estavam ocupados em fazer cumprir o embargo contra Cuba. De 1990 a 2003 houve 93 investigações relacionadas com o terrorismo com 9.000 dólares de multas; e 11.000 investigações sobre Cuba com 8 milhões de dólares de multas. As revelações receberam o tratamento de silêncio nos media dos EUA, bem como doutros lugares, que eu saiba.
Por que deveria o Departamento do Tesouro dedicar muito mais energia a estrangular Cuba do que à “guerra contra o terror”? As razões básicas foram explicadas em documentos internos dos anos Kennedy­‑Johnson. Os planificadores do Departamento de Estado advertiram que a «mera existência» do regime de Castro é um «desafio bem sucedido» às políticas estadunidenses que remontam a 150 anos atrás, à Doutrina Monroe; não os russos, mas o intolerável desafio ao dono do hemisfério, de modo semelhante ao crime do Irão de desafio bem sucedido em 1979, ou à rejeição pela Síria das exigências de Clinton. A punição da população era encarada como totalmente legítima, ficamos a saber por documentos internos. «O povo cubano [é] responsável pelo seu regime», decidiu o Departamento de Estado de Eisenhower, pelo que os EUA têm o direito de os fazer sofrer por estrangulamento económico, posteriormente escalado para terrorismo directo por Kennedy. Eisenhower e Kennedy concordaram que o embargo apressaria a saída de Fidel Castro como consequência do «mal-estar crescente entre os famintos cubanos». O pensamento básico foi resumido pelo responsável do Departamento de Estado Lester Mallory: Castro seria removido «através de desencanto e de perda de lealdade devido à insatisfação e à dureza económicas, por isso todos os meios possíveis deveriam empreender-se com prontidão para debilitar a vida económica de Cuba de modo a trazer fome, desespero e o derrubamento do governa». Quando Cuba estava em situação desesperada depois do colapso da União Soviética, Washington intensificou a punição ao povo cubano, por iniciativa dos liberais democratas. O autor das medidas de 1992 para apertar o bloqueio proclamou que «o meu objectivo é provocar destruição em Cuba» (Representante Robert Torricelli). Tudo isto prossegue até ao momento actual.
A administração Kennedy também estava profundamente preocupada com a ameaça de desenvolvimento bem sucedido de Cuba, que poderia ser um modelo para outros. Mas mesmo aparte destas preocupações habituais, o desafio bem sucedido em si mesmo é intolerável, situado num posto bem mais alto, como prioridade, do que combater o terrorismo. Estes são só mais uns exemplos de princípios que estão bem estabelecidos, racionais a nível interno, suficientemente claros para as vítimas, mas escassamente perceptíveis no mundo intelectual dos agentes.
Se reduzir a ameaça do terrorismo fosse uma alta prioridade para Washington ou Londres, como certamente devia ser, haveria modos de actuar – mesmo aparte da ideia imencionável de retirar a participação. O primeiro passo, claramente, é tentar entender as suas raízes. No que diz respeito ao terrorismo islâmico, há um amplo consenso entre as agências de inteligência e os investigadores. Identificam duas categorias: os jihadistas, que se encaram a si mesmos como uma vanguarda, e a sua audiência, que pode recusar o terrorismo mas que, ainda assim, encaram a sua causa como justa. Uma séria campanha contra­‑terrorista começaria consequentemente por considerar os agravos e, onde apropriado, tratá­‑los, como deveria ser feito com ou sem a ameaça do terrorismo. Há amplo consenso entre os especialistas de que o terrorismo ao estilo da Al Qaeda «é actualmente menos um produto do fundamentalismo islâmico do que de um simples objectivo estratégico: forçar os EUA e os seus aliados ocidentais a retirar forças de combate da Península Arábica e de outros países muçulmanos» (Robert Pape, que fez a mais importante investigação sobre bombistas suicidas). Analistas sérios assinalaram que as palavras e feitos de bin Laden estão estreitamente correlacionados. Os jihadistas organizados pela administração Reagan e seus aliados puseram fim ao seu terrorismo com base no Afeganistão no interior da Rússia depois de os russos se terem retirado do Afeganistão, embora o tenham prosseguido a partir da ocupada Chechénia muçulmana, palco de horripilantes crimes russos que retrocedem ao século XIX. Osama voltou­‑se contra os EUA em 1991 porque os considerou ocupantes da mais sagrada terra árabe; isso foi reconhecido mais tarde pelo Pentágono como uma razão para mudar bases dos EUA da Arábia Saudita para o Iraque. Adicionalmente, estava zangado pela rejeição do seu esforço para se juntar ao ataque contra Saddam.
Na mais ampla investigação académica do fenómeno da jihad, Fawaz Gerges conclui que, depois do 11-S, «a resposta dominante à Al Qaeda no mundo muçulmano foi muito hostil», especialmente entre os jihadistas, que a encaravam como uma franja extremista perigosa. Em vez de reconhecer que essa oposição à Al Qaeda oferecia a Washington «a via mais efectiva de cravar um prego no seu caixão» encontrando «meios inteligentes para alimentar e apoiar as forças internas que se opunham a ideologias militantes como a rede de bin Laden», escreve ele, a administração Bush fez exactamente o que bin Laden esperava que fizesse: recorrer à violência, particularmente na invasão do Iraque. A Al­‑Azhar, no Egipto, a instituição mais antiga de ensino superior religioso do mundo islâmico emitiu uma fatwa, que ganhou forte apoio, aconselhando «todos os muçulmanos do mundo a empreender a jihad contra as forças invasoras americanas» numa guerra que Bush tinha declarado contra o Islão. Uma importante personalidade religiosa em Al­‑Azhar, que tinha sido «um dos primeiros académicos muçulmanos a condenar a Al Qaeda [e que foi] frequentemente acusado por clérigos ultraconservadores como um reformador pró­‑ocidental, decretou que os esforços para deter a invasão americana [do Iraque] são um “dever islâmico vinculativo”». Investigações realizadas pela inteligência saudita e israelita, apoiadas por institutos de estudos estratégicos dos EUA, concluem que os combatentes estrangeiros no Iraque, uns 5­‑10% da insurgência, foram mobilizados pela invasão e não tinham registros prévios de associação com grupos terroristas. As proezas dos planificadores da administração Bush na inspiração do radicalismo e do terrorismo islâmico, e na união com Osama na criação de um “choque de civilizações”, são bastante impressionantes.
Michael Scheuer, o analista sénior da CIA responsável por seguir o rasto de Osama bin Laden desde 1996, escreve que «bin Laden tem sido preciso em dizer à América as razões pelas quais empreendeu a guerra contra nós. Nenhuma das razões tem alguma coisa a ver com as nossas liberdades e democracia, mas têm tudo a ver com as políticas e acções dos EUA no mundo muçulmano». A preocupação de Osama «é mudar de maneira drástica as políticas ocidentais e estadunidenses em relação ao mundo islâmico». Scheuer escreve: «É um guerreiro prático, não um terrorista apocalíptico à procura do Armageddon». Como Osama repete constantemente, «a Al Qaeda não apoia nenhuma resistência islâmica que procura conquistar novas terras». Preferindo ilusões reconfortantes, Washington ignora «o poder ideológico, a letalidade e o potencial de crescimento da ameaça personificada por Osama bin Laden, bem como o ímpeto que foi dada a essa ameaça pela invasão e a ocupação do Iraque muçulmano dirigida pelos EUA,, [que é] a cobertura no bolo para a Al Qaeda». «As forças e políticas dos EUA estão a completar a radicalização do mundo islâmico, algo que Osama bin Laden tem vindo a tentar fazer com substancial mas incompleto sucesso desde os primórdios da década de 1990. Como resultado, [acrescenta Scheuer], é justo concluir que os Estados Unidos da América permanecem como o único aliado indispensável de bin Laden».
Os agravos são muito reais. Um painel consultivo do Pentágono concluía há um ano que «os muçulmanos “não odeiam a nossa liberdade”, mas antes odeiam as nossas políticas», acrescentando que «quando a diplomacia pública estadunidense fala acerca de levar a democracia às sociedades islâmicas, isso é visto como nada mais do que hipocrisia para proveito próprio». As conclusões remontam há muitos anos. Em 1958, o Presidente Eisenhower interrogou­‑se acerca da «campanha de ódio contra nós» no mundo árabe, «não por parte dos governos mas dos povos», que estão «do lado de Nasser», apoiando o nacionalismo laico independente. As razões da «campanha de ódio» foram sublinhadas pelo Conselho Nacional de Segurança: «Aos olhos da maioria dos árabes, os EUA parecem opor­‑se à consecução dos objetivos do nacionalismo árabe. Eles crêem que os EUA estão a procurar proteger os seus interesses petrolíferos no Próximo Oriente apoiando o status quo e opondo-se ao progresso político e económico». Além disso, a percepção é compreensível: «os nossos interesses económicos e culturais na zona levaram de forma natural a relações estreitas dos EUA com elementos do mundo árabe cujos interesses primários descansam na manutenção de relações com o Ocidente e do status quo nos seus países», bloqueando a democracia e o desenvolvimento.
Praticamente o mesmo foi descoberto pelo Wall Street Journal quando pesquisou as opiniões de «muçulmanos endinheirados» imediatamente após o 11-S: banqueiros, profissionais, empresários, comprometidos com os “valores ocidentais” oficiais e incorporados no projecto de globalização neoliberal. Também eles estavam consternados pelo apoio de Washington a estados autoritários duros e pelas barreiras que levanta contra o desenvolvimento e a democracia ao «apoiar regimes opressores”. Tinham, no entanto, novos agravos além dos apontados pelo Conselho Nacional de Segurança em 1958: o regime de sanções de Washington contra o Iraque e o apoio à ocupação militar israelita e à absorção dos territórios. Não houve pesquisas à imensa massa de gente pobre e sofredora, mas é provável que os seus sentimentos sejam mais intensos, a par de um amargo ressentimento para com as elites ocidentalizadas e para com os governantes brutais e corruptos apoiados pelo poder ocidental que asseguram que a enorme riqueza da região flua para o Ocidente, para além de se enriquecerem a si mesmos. A invasão do Iraque só intensificou estes sentimentos ainda mais, muito como antecipado.
Há vias para lidar de forma construtiva com a ameaça do terrorismo, embora não aquelas preferidas pelo «aliado indispensável de bin Laden», ou por aqueles que tentam evitar o mundo real adoptando poses heróicas acerca do islamo­‑fascismo, ou que simplesmente alegam que não são feitas propostas quando há propostas bastante directas válidas que não lhes agradam. As vias construtivas têm que começar com uma olhada honesta frente ao espelho, uma tarefa nunca fácil, mas sempre necessária.

Noam Chomsky
http://infoalternativa.org/autores/
chomsky/chomsky024.htm

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