Zaida Rosas está na casa dos cinquenta e tem quinze netos. Trabalha na cooperativa têxtil Venezuela Avanza, de Caracas, recentemente constituída. Os 209 trabalhadores da cooperativa são na sua maior parte mulheres do bairro antes desempregadas. As suas casas, nos empinados cerros da zona oeste de Caracas, foram na sua maior parte construídas por elas mesmas e seus familiares.
Zaida trabalha sete horas por dia, cinco dias por semana, por um salário de 117 dólares por mês, que é o rendimento comum que todos os empregados decidiram por votação atribuir‑se. É muito menos que o salário mínimo, estabelecido por lei em 188 dólares mensais. A razão é que «assim podemos devolver o empréstimo [governamental para iniciar o negócio]», explicou. Os cooperativistas de Venezuela Avanza reúnem-se em assembleia uma vez por mês a fim de decidir as suas políticas. Como na maior parte das cooperativas de produtores, não se pagam salários, mas abonam‑se avanços sobre os lucros. Os trabalhadores, ao atribuirem a si mesmos somas inferiores ao salário mínimo, a fim de reembolsar o Estado, encontram‑se numa situação precária. «Esperamos que as nossas condições de trabalho melhorem com o tempo», afirma Zaida.
Com o fim de capacitar os trabalhadores das cooperativas para dirigir os seus negócios, o novo Ministério da Economia Popular (MINEP) concede-lhes modestas bolsas para o estudo do cooperativismo, da produção e da contabilidade. «A minha família está bem mais feliz: aprendi a escrever e tenho já o meu terceiro grau», afirma.
Zaida faz parte também de uma rede local mais ampla de cooperativas: a sua é uma das duas cooperativas de produção construídas por outra cooperativa local de pedreiros que, juntamente com uma clínica, um supermercado cooperativo, uma escola e um centro cívico formam um «núcleo de desenvolvimento endógeno», como eles mesmos o denominam. Estes núcleos formam o cerne do plano estatal para o desenvolvimento de uma economia igualitária.
A cobertura que os meios de comunicação estadunidenses realizam da Venezuela tende a centrar‑se na produção petrolífera e na disputa verbal – ambas sem dúvida relacionadas – entre o presidente Hugo Chávez e a Casa Branca. Chávez, por exemplo, costuma referir-se a George W. Bush como «Mr. Danger», em referência a um bruto estrangeiro protagonista de uma novela clássica venezuelana. Com menos subtileza, o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, comparou recentemente Chávez a Hitler. Entretidos com estes epítetos, os repórteres passam por alto uma importante notícia: o crescimento sem precedentes de cooperativas, que deu nova forma às actividades económicas de centenas de milhares de venezuelanos como Zaida Rosas. Numa recente visita a Caracas, tivemos ocasião de conversar com membros destas cooperativas e outras pessoas participantes desta novel experiência que permitirá abrir a economia da Venezuela de baixo acima.
EXPLOSÃO DE COOPERATIVAS
O nosso primeiro encontro com o movimento cooperativista da Venezuela foi com Luis Guacarán, membro de uma cooperativa de táxis, que nos conduziu aos arrabaldes de Caracas. No chuvoso trajecto, perguntámos a Luis como o afectavam pessoalmente as mudanças introduzidas por Chávez. Respondeu-nos que agora se sentia um cidadão, que tinha direito a compartilhar a riqueza petrolífera da nação que sempre tinha ido parar «à oligarquia». O povo precisava de serviços de saúde, de educação e de empregos a sério, o que era razão suficiente para que Chávez desviasse rendimentos do petróleo para a satisfação destas necessidades. Dois dos cinco filhos varões de Luis estão no exército, uma filha estuda engenharia do petróleo e outra dirige uma cabeleireira. Todos eles estão a cursar estudos de formação profissional.
Quase todas as pessoas com quem falámos durante a nossa visita eram participantes de uma cooperativa. A Constituição de 1999 exige que o Estado «promova e proteja» as cooperativas. Não obstante, só depois da aprovação da Lei Especial de Associações Cooperativas, em 2001, o número destas disparou. Quando Chávez chegou ao poder em 1998, havia 762 cooperativas legalmente registadas, compostas de uns 20.000 associados. Em 2001 havia quase 1.000 cooperativas; em 2002, 2.000; e em 2003, 8.000. Em meados de 2006, a Superintendência Nacional de Cooperativas (Sunacoop) informa que o número de cooperativas registadas é de 108.000 e o de membros associados, 1.500.000. Desde 2003, o MINEP forneceu formação empresarial e de autogestão gratuitamente, ajudou os trabalhadores a converter empresas com problemas em cooperativas, e ampliou os créditos iniciais às empresas e os destinados à aquisição destas pelos próprios empregados. O movimento resultante veio cada vez mais a definir a «Revolução Bolivariana», termo utilizado por Chávez para a sua remodelação das estruturas económicas e políticas da Venezuela.
Na actualidade, o MINEP tenta não ficar atrás na iniciativa que ele mesmo desencadeou. Enquanto as cooperativas anteriores ao actual Governo eram principalmente entidades de crédito, as “bolivarianas” actuais são bem mais diversas: metade pertencem ao sector de serviços, um terço ao de produção e o resto divide‑se entre poupança, alojamento, consumo e outros âmbitos. Os cooperativistas trabalham principalmente em quatro sectores: 31% no comércio e na hotelaria; 29% no transporte, na armazenagem e nas comunicações; 18% na agricultura, na caça e na pesca; e 8,3% na indústria manufactureira. O cooperativismo está em marcha na Venezuela, numa escala e numa intensidade nunca vistas em nenhum lugar.
As cooperativas são na sua maior parte pequenas. Desde Janeiro de 2005, no entanto, por ocasião do anúncio do Governo de uma política de expropriação de instalações industriais cessantes, o MINEP apoiou os trabalhadores a tomar o controle de algumas grandes empresas que ameaçavam bancarrota. Se uma instalação industrial não utilizada se considera de “utilidade pública”, o início dos procedimentos de expropriação leva com frequência à negociação da compensação correspondente com os proprietários. Num destes casos, os proprietários de uma fábrica de processamento de tomates propriedade da Heinz, em Monagas, ofereceram a venda ao Governo por 600.000 dólares. Depois de uma negociação em que se tiveram em conta os salários e os impostos atrasados, além de uma hipoteca pendente, ambas as partes atingiram um acordo amistoso de venda aos trabalhadores por 260.000 dólares, com empréstimos preferenciais proporcionados pelo Governo. Noutro exemplo, bem mais polémico, trabalhadores deslocados ocuparam uma fábrica de refinação de açúcar, em Cumanacoa, e voltaram a pô‑la em funcionamento. Então, o Governo federal expropriou a propriedade e entregou-a à cooperativa dos trabalhadores da fábrica. Respeitaram‑se os direitos de propriedade, graças aos empréstimos do Governo aos trabalhadores, embora o preço pago tenha sido bastante inferior ao pedido pelos proprietários. Estas empresas expropriadas são geridas com frequência por representantes eleitos pelos trabalhadores, juntamente com pessoas designadas pelo Governo.
No entanto, há condições. «Não expropriámos Cumanacoa e Sideroca a favor dos trabalhadores só para que estes se tornem ricos da noite para o dia», afirmou Hugo Chávez. «Não o fizemos só para eles, trata‑se de distribuir a riqueza entre todos». Tomemos o caso de Cacao Sucre, outra produtora de açúcar fechada desde há oito anos pelos seus proprietários privados, que deixaram 120 trabalhadores desempregados numa população de pobreza visível. O governador do Estado fez um telefonema aos trabalhadores para que formassem uma cooperativa. Depois de receber formação em matéria de autogestão, a cooperativa açucareira integrou os 3.665 cultivadores de cana. Em Julho de 2005, esta grande cooperativa tornou‑se na primeira “Empresa de Produção Social”. Esta nova designação indica que a cooperativa está obrigada a dedicar uma parte dos seus lucros ao financiamento de serviços de saúde, educação e habitação destinados à população local, e a abrir os seus refeitórios a toda a comunidade.
Com só 700 empresas, fechadas ou em bancarrota, na lista oficial de candidatos à expropriação, a cooperativização a grande escala de instalações existentes é limitada, e até hoje um tanto lenta. Os sindicatos estão a identificar mais empresas em situação de subexploração, mas resta um longo caminho por percorrer.
As cooperativas são um elemento básico do novo modelo económico venezuelano. Têm potencial suficiente para cumprir uma série de objectivos da Revolução Bolivariana, entre outros a luta contra o desemprego, a promoção de um desenvolvimento económico sustentável, a concorrência pacífica com empresas capitalistas convencionais e o desenvolvimento do socialismo à moda de Chávez, em processo de definição.
NÃO MAIS AGÊNCIAS ESTATAIS COMO AS DOS NOSSOS AVÔS
O capitalismo gera desemprego. O neoliberalismo agravou esta tendência na Venezuela, e produziu um amplo grupo estável de pessoas marginalizadas, excluídas de qualquer tipo de trabalho e consumo significativos. Ainda que não totalmente esquecidos, culpavam‑nos da sua situação e faziam‑nos sentir inúteis. Mas a Revolução Bolivariana tem a ver com a exigência de reconhecimento. Em Março de 2004, Chávez convocou os venezuelanos a uma nova “missão”, por ocasião da inauguração pelo MINEP do programa “Misión Vuelvan Caras”. A partir deles mesmos e em uso das suas próprias capacidades para formar cooperativas, os beneficiários poderiam combater o desemprego e a exclusão, mudando realmente as relações de produção.
Na Venezuela, a expressão “vuelvan caras” evoca a ordem de um general insurgente às suas tropas, quando estas se encontravam rodeadas por tropas espanholas durante a guerra de Independência. Efectivamente, vem dizer: abandonem o vosso papel de perseguidos, voltem-se e ataquem de frente o inimigo. O novo inimigo é o desemprego, e o objectivo do pleno emprego haverão de consegui-lo grupos, particularmente de desempregados, capazes de fazer uma contribuição mútua e de trabalhar conjuntamente. Vuelvan Caras ensina gestão empresarial, contabilidade e valores cooperativos a centenas de milhares de estudantes bolseiros. Os graduados são livres de procurar empregos normais ou de formar micro‑empresas, para o que lhes são oferecidos créditos; contudo, o aspecto cooperativo é prioritário em matéria de assistência técnica, créditos e contratos. Mas a primeira chispa – a capacidade empresarial colectiva necessária para a cooperativização – deve vir do povo. Mais de 70% dos graduados do curso de 2005 participaram na formação de 7.592 novas cooperativas.
Vuelvan Caras parece já dar resultados. O desemprego atingiu um nível de 18% em 2003, mas reduziu-se para 14,5% em 2004 e para 11,5% em 2005. O MINEP está a preparar um Vuelvan Caras II, com o objectivo de atrair outros 700.000 desempregados. No entanto, com uma população de 26 milhões, a batalha da Venezuela contra as causas estruturais do desemprego acaba de começar.
DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO ENDÓGENO
As cooperativas também contribuem para atingir o objectivo mais amplo do Governo de conseguir um «desenvolvimento endógeno». O investimento estrangeiro directo continua na Venezuela, mas o Governo pretende evitar a dependência do capital estrangeiro, que expõe um país à habitual chantagem capitalista. O desenvolvimento endógeno significa «ser capaz de produzir a semente que semeamos, os alimentos que comemos, a roupa que usamos, e os bens e serviços que precisamos, rompendo com isso a dependência económica, cultural e tecnológica que travou o nosso desenvolvimento, em primeiro lugar pessoal». Com este objectivo, as cooperativas são ferramentas ideais, porquanto enraízam o desenvolvimento na Venezuela: sob o controle de trabalhadores‑proprietários locais, não colocam o risco de fuga de capitais habitual nas empresas capitalistas.
A necessidade de desenvolvimento endógeno tornou-se dolorosamente evidente para os venezuelanos com a greve de 2002, promovida pelos adversários de Chávez. Os principais distribuidores de alimentos do país, importados em grande parte, deram o seu apoio à greve, parando a distribuição de alimentos e pondo em evidência uma crescente vulnerabilidade. Em resposta, o Governo lançou a sua própria cadeia paralela de supermercados. Em apenas três anos, Mercal contava já com 14.000 pontos de venda, quase todos em bairros pobres, e vendia os produtos básicos a preços entre 20% e 50% inferiores. Mercal é já a maior cadeia de supermercados do país e a sua segunda maior empresa. Os seus estabelecimentos atraem um público de todas as tendências políticas, graças aos seus baixos preços e à qualidade dos seus produtos. Com o fim de promover a «soberania alimentar», Mercal aumentou a sua proporção de fornecedores nacionais até mais de 40%, dando prioridade, na medida do possível, às cooperativas. A Venezuela continua a importar 64% dos alimentos que consome, mas a percentagem reduziu‑se, de 72% em 1998. Ao reduzir a dependência das importações, os custos de transporte e os intermediários, ao mesmo tempo que dá preferência aos fornecedores locais, Mercal espera poder acabar com a sua subvenção de 24 milhões de dólares mensais.
DESLOCANDO O CAPITALISMO E CONSTRUINDO O SOCIALISMO
Outra razão pela qual os arquitectos da denominada Revolução Bolivariana impulsionam decididamente o modelo cooperativo é a sua opinião de que as cooperativas podem cobrir as necessidades melhor que as empresas capitalistas convencionais. Libertadas do ónus que implica os gestores de altos salários e os investidores absentistas, só interessados nos lucros, as cooperativas têm um dinamismo financeiro que impulsiona as inovações tecnológicas que permitem poupar tempo de trabalho. «As cooperativas são o tipo de negócio do futuro», afirma o ex ministro do Planejamento e do Desenvolvimento Felipe Pérez-Martí. Não só não são empresas exploradoras, como produzem mais que as empresas capitalistas, porquanto – afirma Pérez-Martí – os trabalhadores‑proprietários são obrigados a perseguir a eficácia e o sucesso da sua empresa. Uma afirmação deste tipo causa perplexidade em países como os Estados Unidos, mas um crescente corpo de investigação indica que as cooperativas podem efectivamente ser mais produtivas e proveitosas que as empresas convencionais.
Para verificar se as cooperativas podem superar as empresas capitalistas nos seus próprios termos, é preciso estabelecer um sector cooperativo ou solidário viável em paralelo com o sector capitalista estabelecido e dominante. Hoje, a Venezuela está a preparar esta experiência. Mais de 5% da força de trabalho está empregada já nas cooperativas, segundo o MINEP. Conquanto esta percentagem de cooperativistas supera a da maioria dos países, continua a ser pequena em relação ao tamanho de um sector que tenta vencer em concorrência com o sector capitalista venezuelano. Os seguidores de Chávez esperam que, uma vez lançado o sector, a cooperativização se expanda num «círculo virtuoso», à medida que a força de trabalho convencional, ao observar o desempenho das cooperativas, exija um controle similar do seu trabalho. Elías Jaua, ministro para a Economia Popular, afirma: «O sector privado pode compreender o processo e incorporar-se a esta nova dinâmica social, ou simplesmente ver-se-á deslocado pelas novas forças produtivas que têm uma produção de maior qualidade, uma visão baseada bem mais na solidariedade do que no consumo». Poderíamos considerar que os créditos, a formação e os contratos do MINEP viciam esta dinâmica a favor das cooperativas. No entanto, os graduados da Missão Vuelvan Caras têm a liberdade de se empregarem no sector capitalista. Além disso, a política do MINEP de favorecer as empresas propriedade dos seus trabalhadores não é tão diferente da legislação, sas subvenciones e das isenções fiscais estadunidenses que favorecem as empresas propriedade dos seus investidores.
Por fim, ao pôr os meios de produção nas mãos dos trabalhadores, o movimento cooperativo está a construir directamente o socialismo. A cooperativização, em particular a que se produz em empresas inactivas ocupadas pelos seus trabalhadores, promove «o que sempre foi o nosso objectivo: que os trabalhadores dirijam a produção e que os governos sejam também dirigidos pelos trabalhadores», afirma a ministra do Emprego, María Cristina Iglesias. Por conseguinte, as cooperativas, não são unicamente meios para atingir o que Chávez denomina «socialismo do século XXI»: são na realidade realizações parciais deste.
GESTÃO DE RISCOS DA EXPERIÊNCIA
A cooperativização é fundamental para atingir os objectivos da Revolução Bolivariana. No entanto, os líderes desta reconhecem que têm um longo caminho por percorrer. As empresas capitalistas tradicionais continuam a dominar a economia da Venezuela. E mesmo quando todos os programas actuais de cooperativização têm sucesso, cabe perguntar se essa luta – porque será uma luta – vai conduzir ao socialismo. Michael Albert, da Z Magazine, assegura que as cooperativas podem ser mais produtivas, ao mesmo tempo que apoia determinadamente a experiência venezuelana. Mas, na ausência de planos de abandono do mercado, duvida que conduzam ao socialismo, porquanto os efeitos de cooperativas «empenhadas em superar as antigas empresas mediante a concorrência num contexto definido pelo mercado, podem ser de afiançar nelas uma burocracia gestora e uma orientação competitiva e não social». A intranquilidade de Albert tem fundamento: a história das cooperativas, desde as colónias Amana, em Iowa, à Cooperativa Mondragón, no País Basco, mostra que mesmo que comecem com um mandato de serviço à comunidade, as cooperativas individuais, ou inclusive as redes de cooperativas, tendem a reinternalizar, com carácter de autodefesa, o egoísmo capitalista, e chegam a tornar‑se indistinguíveis dos seus competidores, em situações em que devem competir sozinhas contra um grupo de empresas capitalistas numa economia capitalista.
Os membros do governo de Chávez reconhecem francamente estes riscos. O vice‑ministro para a Economia Popular, Juan Carlos Loyo, ao mesmo tempo que assinala que o serviço à comunidade foi parte do credo cooperativista desde o começo, pede paciência: «Sabemos que vimos de um estilo de vida capitalista que é profundamente individualista e autocentrado». Marcela Maspero, coordenadora nacional da nova federação sindical chavista UNT, reconhece «o risco de transformar os nossos camaradas em capitalistas neoliberais». Neste exemplo único oferecido pela Venezuela, no entanto, a construção de um sector cooperativista viável é o objectivo de um Governo que conta com consideráveis recursos financeiros, pelo que o seu objectivo de construir o socialismo é ao mesmo tempo um projecto popular nacional. Na Venezuela, o sucesso é portanto uma esperança plausível. Manter-se-ia uma longínqua analogia com a situação do Maio de 68 em França, na qual o governo de De Gaulle e o Partido Comunista Francês teriam estado a favor das exigências de estudantes e trabalhadores de uma maior autogestão.
E há problemas, sem dúvida. Um grupo pode registar-se como “cooperativa fantasma” e conseguir uma doação de posta em marcha, e a seguir desaparecer com o dinheiro. E dado que as cooperativas têm preferência na obtenção de contratos governamentais, há um significativo nível de fraude. «Há cooperativas registadas como tais no papel», informa o citado Elías Jaua, «mas que têm um chefe que recebe um salário superior e trabalhadores assalariados, bem como uma desigual distribuição do trabalho e do rendimento». A Sunacoop admite que o cumprimento tem falhas. Muitas das novas cooperativas sofreram também as consequências de uma insuficiente formação em autogestão. As autoridades governamentais tentam abordar estes problemas com visitas mais frequentes às cooperativas locais, com o incremento da formação e dos serviços de apoio, bem como com a descentralização da supervisão a favor das autoridades locais.
Apesar destes obstáculos, as novas cooperativas, com o apoio governamental, estão a construir um movimento nacional descentralizado que tem a sua própria inércia e instituições. No passado Maio foi lançado o Conselho Executivo Nacional de Cooperativas (Cencoop). Este Conselho é composto por cinco membros cooperantes de cada um dos 25 Estados venezuelanos, eleitos pelos Conselhos estatais de cooperativas, que por sua vez são eleitos pelos Conselhos municipais, compostos por cooperativistas locais. O Cencoop representará a Venezuela na Aliança Cooperativa Internacional, organismo internacional que acolhe 700 milhões de cooperativistas que fazem parte de centenas de milhares de cooperativas em 95 países.
Num primeiro momento, o movimento cooperativista pré-bolivariano sentiu-se deixado de lado e criticou esta rápida cooperativização. Contudo, foi solicitada a sua assessoria em cada etapa do planeamento do Cencoop, e por fim passou a fazer parte do Conselho, partilhando com o novo movimento a sua valiosa experiência adquirida. Os novos conselhos cooperativos estatais e municipais são parte de um plano destinado a descentralizar as funções do MINEP. Depois de ter contribuído para organizar o Cencoop, o superintendente do MINEP, Carlos Molina, afirma que o seu Ministério deixará àquele as mãos livres, garantido assim a crescente autonomia do movimento cooperativo. Actualmente, no entanto, muitas das novas cooperativas continuam a ser dependentes do apoio do MINEP.
OS OPOSITORES AO MOVIMENTO
Seja qual for o sucesso da cooperativização, esta corre riscos, tanto internos como externos. Até agora, o governo de Chávez compensou os capitalistas pelas suas expropriações e sinalizou para a sua conversão em cooperativas só as empresas que se encontravam em algum tipo de dificuldade. No entanto, chegado o momento em que os trabalhadores de empresas viáveis, face ao novo poder de que se dotaram os seus colegas cooperativistas nos seus postos de trabalho e a sua mais equitativa distribuição dos rendimentos, podem desejar cooperativizar também as suas empresas. Além disso, tendo em conta que durante anos se converteu em lucro empresarial uma parte importante do valor criado com o seu trabalho – em muitos casos, suficiente para cobrir várias vezes o valor de mercado da empresa –, não se considerarão os ditos trabalhadores com argumentos para pedir a transferência da empresa, sem compensação? Em poucas palavras, se a Revolução deseja estender e reforçar ainda mais a solidariedade revolucionária antes de terem lugar novos actos contra‑revolucionários, não deveria iniciar uma autêntica redistribuição da riqueza produtiva e cooperativizar empresas, directamente a cargo dos capitalistas venezuelanos? Mais cedo ou mais tarde, a experiência cooperativa venezuelana terá que abordar esta questão.
Na nossa assistência ao Foro Social Mundial, em Caracas, em Janeiro passado, pudemos vislumbrar o acelerado avanço da Revolução Bolivariana, e desde então seguimo-lhe a pista. Estamos convencidos de que para aquelas pessoas de todo o mundo que pensam que “outro mundo é possível”, a aposta desta experiência é enorme. Podemos, portanto, predizer que enfrentará genuínas ameaças externas. O brevíssimo golpe de Estado de Abril de 2002 e a destrutiva greve dos altos funcionários da indústria petrolífera em Dezembro desse ano, foram obra de uma elite enfurecida e deslocada, estimulada em cada uma das suas acções pelos Estados Unidos. Agora, a campanha continua: o Departamento de Estado, por intermédio de grupos nacionais, tem injectado cinco milhões de dólares por ano na oposição que apoiou o golpe. No entanto, a democratização dos postos de trabalho prossegue sem pausa, e cada vez soma mais venezuelanos ao processo revolucionário. Esta inclusão é em si mesma uma defesa, porquanto amplia, unifica e reforça a resistência com a qual os venezuelanos enfrentariam novas acções destinadas a desviar a revolução ou a pôr‑lhe fim.
FONTES
Muitos artigos valiosos foram coligidos em www.Venezuelanalysis.com, incluindo: C. Harnecker, “The New Cooperative Movement in Venezuela’s Bolivarian Process” (de Monthly Review Zine) 5/05; S. Wagner, “Vuelvan Caras: Venezuela’s Mission for Building Socialism of the 21st Century”, 7/05; “Poverty and Unemployment Down Significantly in 2005”, 10/05; F. Perez-Marti, “The Venezuelan Model of Development: The Path of Solidarity”, 6/04; “Venezuela: Expropriations, cooperatives and co-management”, Green Left Weekly, 10/05; M. Albert, “Venezuela’s Path”, Z-Net, 11/05; O. Sunkel, Development from Within: Toward a Neostructuralist Approach for Latin America (L. Rienner Publ., 1993); H. Thomas, “Performance of the Mondragón Cooperatives in Spain”, in Participatory and Self-Managed Firms, eds. D. C. Jones e J. Svejnar (Lexington Books, 1982); D. Levine e L. D’A. Tyson, “Participation, Productivity and the Firm’s Environment”, in Paying for Productivity: A Look at the Evidence, ed. A. Blinder (Brookings Inst., 1990); D. Schweickart, After Capitalism (Rowman & Littlefield, 2002); M. Lebowitz, “Constructing Co-management in Venezuela: Contradictions along the Path”, Monthly Review Zine 10/05; Z. Centeno, “Cooperativas: una visión para impulsar el Desarrollo Endógeno”, em www.mci.gob.ve.
Betsy Bowman; Bob Stone
Dollars & Sense; traduzido da versão castelhana em Rebelión
http://www.infoalternativa.org/amlatina/venezuela049.htm
Zaida trabalha sete horas por dia, cinco dias por semana, por um salário de 117 dólares por mês, que é o rendimento comum que todos os empregados decidiram por votação atribuir‑se. É muito menos que o salário mínimo, estabelecido por lei em 188 dólares mensais. A razão é que «assim podemos devolver o empréstimo [governamental para iniciar o negócio]», explicou. Os cooperativistas de Venezuela Avanza reúnem-se em assembleia uma vez por mês a fim de decidir as suas políticas. Como na maior parte das cooperativas de produtores, não se pagam salários, mas abonam‑se avanços sobre os lucros. Os trabalhadores, ao atribuirem a si mesmos somas inferiores ao salário mínimo, a fim de reembolsar o Estado, encontram‑se numa situação precária. «Esperamos que as nossas condições de trabalho melhorem com o tempo», afirma Zaida.
Com o fim de capacitar os trabalhadores das cooperativas para dirigir os seus negócios, o novo Ministério da Economia Popular (MINEP) concede-lhes modestas bolsas para o estudo do cooperativismo, da produção e da contabilidade. «A minha família está bem mais feliz: aprendi a escrever e tenho já o meu terceiro grau», afirma.
Zaida faz parte também de uma rede local mais ampla de cooperativas: a sua é uma das duas cooperativas de produção construídas por outra cooperativa local de pedreiros que, juntamente com uma clínica, um supermercado cooperativo, uma escola e um centro cívico formam um «núcleo de desenvolvimento endógeno», como eles mesmos o denominam. Estes núcleos formam o cerne do plano estatal para o desenvolvimento de uma economia igualitária.
A cobertura que os meios de comunicação estadunidenses realizam da Venezuela tende a centrar‑se na produção petrolífera e na disputa verbal – ambas sem dúvida relacionadas – entre o presidente Hugo Chávez e a Casa Branca. Chávez, por exemplo, costuma referir-se a George W. Bush como «Mr. Danger», em referência a um bruto estrangeiro protagonista de uma novela clássica venezuelana. Com menos subtileza, o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, comparou recentemente Chávez a Hitler. Entretidos com estes epítetos, os repórteres passam por alto uma importante notícia: o crescimento sem precedentes de cooperativas, que deu nova forma às actividades económicas de centenas de milhares de venezuelanos como Zaida Rosas. Numa recente visita a Caracas, tivemos ocasião de conversar com membros destas cooperativas e outras pessoas participantes desta novel experiência que permitirá abrir a economia da Venezuela de baixo acima.
EXPLOSÃO DE COOPERATIVAS
O nosso primeiro encontro com o movimento cooperativista da Venezuela foi com Luis Guacarán, membro de uma cooperativa de táxis, que nos conduziu aos arrabaldes de Caracas. No chuvoso trajecto, perguntámos a Luis como o afectavam pessoalmente as mudanças introduzidas por Chávez. Respondeu-nos que agora se sentia um cidadão, que tinha direito a compartilhar a riqueza petrolífera da nação que sempre tinha ido parar «à oligarquia». O povo precisava de serviços de saúde, de educação e de empregos a sério, o que era razão suficiente para que Chávez desviasse rendimentos do petróleo para a satisfação destas necessidades. Dois dos cinco filhos varões de Luis estão no exército, uma filha estuda engenharia do petróleo e outra dirige uma cabeleireira. Todos eles estão a cursar estudos de formação profissional.
Quase todas as pessoas com quem falámos durante a nossa visita eram participantes de uma cooperativa. A Constituição de 1999 exige que o Estado «promova e proteja» as cooperativas. Não obstante, só depois da aprovação da Lei Especial de Associações Cooperativas, em 2001, o número destas disparou. Quando Chávez chegou ao poder em 1998, havia 762 cooperativas legalmente registadas, compostas de uns 20.000 associados. Em 2001 havia quase 1.000 cooperativas; em 2002, 2.000; e em 2003, 8.000. Em meados de 2006, a Superintendência Nacional de Cooperativas (Sunacoop) informa que o número de cooperativas registadas é de 108.000 e o de membros associados, 1.500.000. Desde 2003, o MINEP forneceu formação empresarial e de autogestão gratuitamente, ajudou os trabalhadores a converter empresas com problemas em cooperativas, e ampliou os créditos iniciais às empresas e os destinados à aquisição destas pelos próprios empregados. O movimento resultante veio cada vez mais a definir a «Revolução Bolivariana», termo utilizado por Chávez para a sua remodelação das estruturas económicas e políticas da Venezuela.
Na actualidade, o MINEP tenta não ficar atrás na iniciativa que ele mesmo desencadeou. Enquanto as cooperativas anteriores ao actual Governo eram principalmente entidades de crédito, as “bolivarianas” actuais são bem mais diversas: metade pertencem ao sector de serviços, um terço ao de produção e o resto divide‑se entre poupança, alojamento, consumo e outros âmbitos. Os cooperativistas trabalham principalmente em quatro sectores: 31% no comércio e na hotelaria; 29% no transporte, na armazenagem e nas comunicações; 18% na agricultura, na caça e na pesca; e 8,3% na indústria manufactureira. O cooperativismo está em marcha na Venezuela, numa escala e numa intensidade nunca vistas em nenhum lugar.
As cooperativas são na sua maior parte pequenas. Desde Janeiro de 2005, no entanto, por ocasião do anúncio do Governo de uma política de expropriação de instalações industriais cessantes, o MINEP apoiou os trabalhadores a tomar o controle de algumas grandes empresas que ameaçavam bancarrota. Se uma instalação industrial não utilizada se considera de “utilidade pública”, o início dos procedimentos de expropriação leva com frequência à negociação da compensação correspondente com os proprietários. Num destes casos, os proprietários de uma fábrica de processamento de tomates propriedade da Heinz, em Monagas, ofereceram a venda ao Governo por 600.000 dólares. Depois de uma negociação em que se tiveram em conta os salários e os impostos atrasados, além de uma hipoteca pendente, ambas as partes atingiram um acordo amistoso de venda aos trabalhadores por 260.000 dólares, com empréstimos preferenciais proporcionados pelo Governo. Noutro exemplo, bem mais polémico, trabalhadores deslocados ocuparam uma fábrica de refinação de açúcar, em Cumanacoa, e voltaram a pô‑la em funcionamento. Então, o Governo federal expropriou a propriedade e entregou-a à cooperativa dos trabalhadores da fábrica. Respeitaram‑se os direitos de propriedade, graças aos empréstimos do Governo aos trabalhadores, embora o preço pago tenha sido bastante inferior ao pedido pelos proprietários. Estas empresas expropriadas são geridas com frequência por representantes eleitos pelos trabalhadores, juntamente com pessoas designadas pelo Governo.
No entanto, há condições. «Não expropriámos Cumanacoa e Sideroca a favor dos trabalhadores só para que estes se tornem ricos da noite para o dia», afirmou Hugo Chávez. «Não o fizemos só para eles, trata‑se de distribuir a riqueza entre todos». Tomemos o caso de Cacao Sucre, outra produtora de açúcar fechada desde há oito anos pelos seus proprietários privados, que deixaram 120 trabalhadores desempregados numa população de pobreza visível. O governador do Estado fez um telefonema aos trabalhadores para que formassem uma cooperativa. Depois de receber formação em matéria de autogestão, a cooperativa açucareira integrou os 3.665 cultivadores de cana. Em Julho de 2005, esta grande cooperativa tornou‑se na primeira “Empresa de Produção Social”. Esta nova designação indica que a cooperativa está obrigada a dedicar uma parte dos seus lucros ao financiamento de serviços de saúde, educação e habitação destinados à população local, e a abrir os seus refeitórios a toda a comunidade.
Com só 700 empresas, fechadas ou em bancarrota, na lista oficial de candidatos à expropriação, a cooperativização a grande escala de instalações existentes é limitada, e até hoje um tanto lenta. Os sindicatos estão a identificar mais empresas em situação de subexploração, mas resta um longo caminho por percorrer.
As cooperativas são um elemento básico do novo modelo económico venezuelano. Têm potencial suficiente para cumprir uma série de objectivos da Revolução Bolivariana, entre outros a luta contra o desemprego, a promoção de um desenvolvimento económico sustentável, a concorrência pacífica com empresas capitalistas convencionais e o desenvolvimento do socialismo à moda de Chávez, em processo de definição.
NÃO MAIS AGÊNCIAS ESTATAIS COMO AS DOS NOSSOS AVÔS
O capitalismo gera desemprego. O neoliberalismo agravou esta tendência na Venezuela, e produziu um amplo grupo estável de pessoas marginalizadas, excluídas de qualquer tipo de trabalho e consumo significativos. Ainda que não totalmente esquecidos, culpavam‑nos da sua situação e faziam‑nos sentir inúteis. Mas a Revolução Bolivariana tem a ver com a exigência de reconhecimento. Em Março de 2004, Chávez convocou os venezuelanos a uma nova “missão”, por ocasião da inauguração pelo MINEP do programa “Misión Vuelvan Caras”. A partir deles mesmos e em uso das suas próprias capacidades para formar cooperativas, os beneficiários poderiam combater o desemprego e a exclusão, mudando realmente as relações de produção.
Na Venezuela, a expressão “vuelvan caras” evoca a ordem de um general insurgente às suas tropas, quando estas se encontravam rodeadas por tropas espanholas durante a guerra de Independência. Efectivamente, vem dizer: abandonem o vosso papel de perseguidos, voltem-se e ataquem de frente o inimigo. O novo inimigo é o desemprego, e o objectivo do pleno emprego haverão de consegui-lo grupos, particularmente de desempregados, capazes de fazer uma contribuição mútua e de trabalhar conjuntamente. Vuelvan Caras ensina gestão empresarial, contabilidade e valores cooperativos a centenas de milhares de estudantes bolseiros. Os graduados são livres de procurar empregos normais ou de formar micro‑empresas, para o que lhes são oferecidos créditos; contudo, o aspecto cooperativo é prioritário em matéria de assistência técnica, créditos e contratos. Mas a primeira chispa – a capacidade empresarial colectiva necessária para a cooperativização – deve vir do povo. Mais de 70% dos graduados do curso de 2005 participaram na formação de 7.592 novas cooperativas.
Vuelvan Caras parece já dar resultados. O desemprego atingiu um nível de 18% em 2003, mas reduziu-se para 14,5% em 2004 e para 11,5% em 2005. O MINEP está a preparar um Vuelvan Caras II, com o objectivo de atrair outros 700.000 desempregados. No entanto, com uma população de 26 milhões, a batalha da Venezuela contra as causas estruturais do desemprego acaba de começar.
DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO ENDÓGENO
As cooperativas também contribuem para atingir o objectivo mais amplo do Governo de conseguir um «desenvolvimento endógeno». O investimento estrangeiro directo continua na Venezuela, mas o Governo pretende evitar a dependência do capital estrangeiro, que expõe um país à habitual chantagem capitalista. O desenvolvimento endógeno significa «ser capaz de produzir a semente que semeamos, os alimentos que comemos, a roupa que usamos, e os bens e serviços que precisamos, rompendo com isso a dependência económica, cultural e tecnológica que travou o nosso desenvolvimento, em primeiro lugar pessoal». Com este objectivo, as cooperativas são ferramentas ideais, porquanto enraízam o desenvolvimento na Venezuela: sob o controle de trabalhadores‑proprietários locais, não colocam o risco de fuga de capitais habitual nas empresas capitalistas.
A necessidade de desenvolvimento endógeno tornou-se dolorosamente evidente para os venezuelanos com a greve de 2002, promovida pelos adversários de Chávez. Os principais distribuidores de alimentos do país, importados em grande parte, deram o seu apoio à greve, parando a distribuição de alimentos e pondo em evidência uma crescente vulnerabilidade. Em resposta, o Governo lançou a sua própria cadeia paralela de supermercados. Em apenas três anos, Mercal contava já com 14.000 pontos de venda, quase todos em bairros pobres, e vendia os produtos básicos a preços entre 20% e 50% inferiores. Mercal é já a maior cadeia de supermercados do país e a sua segunda maior empresa. Os seus estabelecimentos atraem um público de todas as tendências políticas, graças aos seus baixos preços e à qualidade dos seus produtos. Com o fim de promover a «soberania alimentar», Mercal aumentou a sua proporção de fornecedores nacionais até mais de 40%, dando prioridade, na medida do possível, às cooperativas. A Venezuela continua a importar 64% dos alimentos que consome, mas a percentagem reduziu‑se, de 72% em 1998. Ao reduzir a dependência das importações, os custos de transporte e os intermediários, ao mesmo tempo que dá preferência aos fornecedores locais, Mercal espera poder acabar com a sua subvenção de 24 milhões de dólares mensais.
DESLOCANDO O CAPITALISMO E CONSTRUINDO O SOCIALISMO
Outra razão pela qual os arquitectos da denominada Revolução Bolivariana impulsionam decididamente o modelo cooperativo é a sua opinião de que as cooperativas podem cobrir as necessidades melhor que as empresas capitalistas convencionais. Libertadas do ónus que implica os gestores de altos salários e os investidores absentistas, só interessados nos lucros, as cooperativas têm um dinamismo financeiro que impulsiona as inovações tecnológicas que permitem poupar tempo de trabalho. «As cooperativas são o tipo de negócio do futuro», afirma o ex ministro do Planejamento e do Desenvolvimento Felipe Pérez-Martí. Não só não são empresas exploradoras, como produzem mais que as empresas capitalistas, porquanto – afirma Pérez-Martí – os trabalhadores‑proprietários são obrigados a perseguir a eficácia e o sucesso da sua empresa. Uma afirmação deste tipo causa perplexidade em países como os Estados Unidos, mas um crescente corpo de investigação indica que as cooperativas podem efectivamente ser mais produtivas e proveitosas que as empresas convencionais.
Para verificar se as cooperativas podem superar as empresas capitalistas nos seus próprios termos, é preciso estabelecer um sector cooperativo ou solidário viável em paralelo com o sector capitalista estabelecido e dominante. Hoje, a Venezuela está a preparar esta experiência. Mais de 5% da força de trabalho está empregada já nas cooperativas, segundo o MINEP. Conquanto esta percentagem de cooperativistas supera a da maioria dos países, continua a ser pequena em relação ao tamanho de um sector que tenta vencer em concorrência com o sector capitalista venezuelano. Os seguidores de Chávez esperam que, uma vez lançado o sector, a cooperativização se expanda num «círculo virtuoso», à medida que a força de trabalho convencional, ao observar o desempenho das cooperativas, exija um controle similar do seu trabalho. Elías Jaua, ministro para a Economia Popular, afirma: «O sector privado pode compreender o processo e incorporar-se a esta nova dinâmica social, ou simplesmente ver-se-á deslocado pelas novas forças produtivas que têm uma produção de maior qualidade, uma visão baseada bem mais na solidariedade do que no consumo». Poderíamos considerar que os créditos, a formação e os contratos do MINEP viciam esta dinâmica a favor das cooperativas. No entanto, os graduados da Missão Vuelvan Caras têm a liberdade de se empregarem no sector capitalista. Além disso, a política do MINEP de favorecer as empresas propriedade dos seus trabalhadores não é tão diferente da legislação, sas subvenciones e das isenções fiscais estadunidenses que favorecem as empresas propriedade dos seus investidores.
Por fim, ao pôr os meios de produção nas mãos dos trabalhadores, o movimento cooperativo está a construir directamente o socialismo. A cooperativização, em particular a que se produz em empresas inactivas ocupadas pelos seus trabalhadores, promove «o que sempre foi o nosso objectivo: que os trabalhadores dirijam a produção e que os governos sejam também dirigidos pelos trabalhadores», afirma a ministra do Emprego, María Cristina Iglesias. Por conseguinte, as cooperativas, não são unicamente meios para atingir o que Chávez denomina «socialismo do século XXI»: são na realidade realizações parciais deste.
GESTÃO DE RISCOS DA EXPERIÊNCIA
A cooperativização é fundamental para atingir os objectivos da Revolução Bolivariana. No entanto, os líderes desta reconhecem que têm um longo caminho por percorrer. As empresas capitalistas tradicionais continuam a dominar a economia da Venezuela. E mesmo quando todos os programas actuais de cooperativização têm sucesso, cabe perguntar se essa luta – porque será uma luta – vai conduzir ao socialismo. Michael Albert, da Z Magazine, assegura que as cooperativas podem ser mais produtivas, ao mesmo tempo que apoia determinadamente a experiência venezuelana. Mas, na ausência de planos de abandono do mercado, duvida que conduzam ao socialismo, porquanto os efeitos de cooperativas «empenhadas em superar as antigas empresas mediante a concorrência num contexto definido pelo mercado, podem ser de afiançar nelas uma burocracia gestora e uma orientação competitiva e não social». A intranquilidade de Albert tem fundamento: a história das cooperativas, desde as colónias Amana, em Iowa, à Cooperativa Mondragón, no País Basco, mostra que mesmo que comecem com um mandato de serviço à comunidade, as cooperativas individuais, ou inclusive as redes de cooperativas, tendem a reinternalizar, com carácter de autodefesa, o egoísmo capitalista, e chegam a tornar‑se indistinguíveis dos seus competidores, em situações em que devem competir sozinhas contra um grupo de empresas capitalistas numa economia capitalista.
Os membros do governo de Chávez reconhecem francamente estes riscos. O vice‑ministro para a Economia Popular, Juan Carlos Loyo, ao mesmo tempo que assinala que o serviço à comunidade foi parte do credo cooperativista desde o começo, pede paciência: «Sabemos que vimos de um estilo de vida capitalista que é profundamente individualista e autocentrado». Marcela Maspero, coordenadora nacional da nova federação sindical chavista UNT, reconhece «o risco de transformar os nossos camaradas em capitalistas neoliberais». Neste exemplo único oferecido pela Venezuela, no entanto, a construção de um sector cooperativista viável é o objectivo de um Governo que conta com consideráveis recursos financeiros, pelo que o seu objectivo de construir o socialismo é ao mesmo tempo um projecto popular nacional. Na Venezuela, o sucesso é portanto uma esperança plausível. Manter-se-ia uma longínqua analogia com a situação do Maio de 68 em França, na qual o governo de De Gaulle e o Partido Comunista Francês teriam estado a favor das exigências de estudantes e trabalhadores de uma maior autogestão.
E há problemas, sem dúvida. Um grupo pode registar-se como “cooperativa fantasma” e conseguir uma doação de posta em marcha, e a seguir desaparecer com o dinheiro. E dado que as cooperativas têm preferência na obtenção de contratos governamentais, há um significativo nível de fraude. «Há cooperativas registadas como tais no papel», informa o citado Elías Jaua, «mas que têm um chefe que recebe um salário superior e trabalhadores assalariados, bem como uma desigual distribuição do trabalho e do rendimento». A Sunacoop admite que o cumprimento tem falhas. Muitas das novas cooperativas sofreram também as consequências de uma insuficiente formação em autogestão. As autoridades governamentais tentam abordar estes problemas com visitas mais frequentes às cooperativas locais, com o incremento da formação e dos serviços de apoio, bem como com a descentralização da supervisão a favor das autoridades locais.
Apesar destes obstáculos, as novas cooperativas, com o apoio governamental, estão a construir um movimento nacional descentralizado que tem a sua própria inércia e instituições. No passado Maio foi lançado o Conselho Executivo Nacional de Cooperativas (Cencoop). Este Conselho é composto por cinco membros cooperantes de cada um dos 25 Estados venezuelanos, eleitos pelos Conselhos estatais de cooperativas, que por sua vez são eleitos pelos Conselhos municipais, compostos por cooperativistas locais. O Cencoop representará a Venezuela na Aliança Cooperativa Internacional, organismo internacional que acolhe 700 milhões de cooperativistas que fazem parte de centenas de milhares de cooperativas em 95 países.
Num primeiro momento, o movimento cooperativista pré-bolivariano sentiu-se deixado de lado e criticou esta rápida cooperativização. Contudo, foi solicitada a sua assessoria em cada etapa do planeamento do Cencoop, e por fim passou a fazer parte do Conselho, partilhando com o novo movimento a sua valiosa experiência adquirida. Os novos conselhos cooperativos estatais e municipais são parte de um plano destinado a descentralizar as funções do MINEP. Depois de ter contribuído para organizar o Cencoop, o superintendente do MINEP, Carlos Molina, afirma que o seu Ministério deixará àquele as mãos livres, garantido assim a crescente autonomia do movimento cooperativo. Actualmente, no entanto, muitas das novas cooperativas continuam a ser dependentes do apoio do MINEP.
OS OPOSITORES AO MOVIMENTO
Seja qual for o sucesso da cooperativização, esta corre riscos, tanto internos como externos. Até agora, o governo de Chávez compensou os capitalistas pelas suas expropriações e sinalizou para a sua conversão em cooperativas só as empresas que se encontravam em algum tipo de dificuldade. No entanto, chegado o momento em que os trabalhadores de empresas viáveis, face ao novo poder de que se dotaram os seus colegas cooperativistas nos seus postos de trabalho e a sua mais equitativa distribuição dos rendimentos, podem desejar cooperativizar também as suas empresas. Além disso, tendo em conta que durante anos se converteu em lucro empresarial uma parte importante do valor criado com o seu trabalho – em muitos casos, suficiente para cobrir várias vezes o valor de mercado da empresa –, não se considerarão os ditos trabalhadores com argumentos para pedir a transferência da empresa, sem compensação? Em poucas palavras, se a Revolução deseja estender e reforçar ainda mais a solidariedade revolucionária antes de terem lugar novos actos contra‑revolucionários, não deveria iniciar uma autêntica redistribuição da riqueza produtiva e cooperativizar empresas, directamente a cargo dos capitalistas venezuelanos? Mais cedo ou mais tarde, a experiência cooperativa venezuelana terá que abordar esta questão.
Na nossa assistência ao Foro Social Mundial, em Caracas, em Janeiro passado, pudemos vislumbrar o acelerado avanço da Revolução Bolivariana, e desde então seguimo-lhe a pista. Estamos convencidos de que para aquelas pessoas de todo o mundo que pensam que “outro mundo é possível”, a aposta desta experiência é enorme. Podemos, portanto, predizer que enfrentará genuínas ameaças externas. O brevíssimo golpe de Estado de Abril de 2002 e a destrutiva greve dos altos funcionários da indústria petrolífera em Dezembro desse ano, foram obra de uma elite enfurecida e deslocada, estimulada em cada uma das suas acções pelos Estados Unidos. Agora, a campanha continua: o Departamento de Estado, por intermédio de grupos nacionais, tem injectado cinco milhões de dólares por ano na oposição que apoiou o golpe. No entanto, a democratização dos postos de trabalho prossegue sem pausa, e cada vez soma mais venezuelanos ao processo revolucionário. Esta inclusão é em si mesma uma defesa, porquanto amplia, unifica e reforça a resistência com a qual os venezuelanos enfrentariam novas acções destinadas a desviar a revolução ou a pôr‑lhe fim.
FONTES
Muitos artigos valiosos foram coligidos em www.Venezuelanalysis.com, incluindo: C. Harnecker, “The New Cooperative Movement in Venezuela’s Bolivarian Process” (de Monthly Review Zine) 5/05; S. Wagner, “Vuelvan Caras: Venezuela’s Mission for Building Socialism of the 21st Century”, 7/05; “Poverty and Unemployment Down Significantly in 2005”, 10/05; F. Perez-Marti, “The Venezuelan Model of Development: The Path of Solidarity”, 6/04; “Venezuela: Expropriations, cooperatives and co-management”, Green Left Weekly, 10/05; M. Albert, “Venezuela’s Path”, Z-Net, 11/05; O. Sunkel, Development from Within: Toward a Neostructuralist Approach for Latin America (L. Rienner Publ., 1993); H. Thomas, “Performance of the Mondragón Cooperatives in Spain”, in Participatory and Self-Managed Firms, eds. D. C. Jones e J. Svejnar (Lexington Books, 1982); D. Levine e L. D’A. Tyson, “Participation, Productivity and the Firm’s Environment”, in Paying for Productivity: A Look at the Evidence, ed. A. Blinder (Brookings Inst., 1990); D. Schweickart, After Capitalism (Rowman & Littlefield, 2002); M. Lebowitz, “Constructing Co-management in Venezuela: Contradictions along the Path”, Monthly Review Zine 10/05; Z. Centeno, “Cooperativas: una visión para impulsar el Desarrollo Endógeno”, em www.mci.gob.ve.
Betsy Bowman; Bob Stone
Dollars & Sense; traduzido da versão castelhana em Rebelión
http://www.infoalternativa.org/amlatina/venezuela049.htm
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