Como fundar uma organização mundial realmente encarregada de defender o bem comum dos povos e de, com o mesmo empenho, entre outros aspectos limitar o poder das grandes potências? Submetem-se a debate algumas ideias de propostas.
A reforma das Nações Unidas é uma serpente marinha a envelhecer [1]. A burocracia da ONU, avolumada com o passar dos anos, é acusada de ineficácia. Dominada pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, o Conselho de Segurança, órgão principal encarregado da manutenção da paz, não cumpriu a sua tarefa e deixou que os conflitos se multiplicassem, optando por intervir de forma arbitrária. Os “dividendos da paz”, anunciados com o fim da Guerra Fria, saldaram-se num logro e, além disso, as vendas de armas voltaram a disparar por as grandes potências terem optado por militarizar as suas economias. As operações de manutenção da paz desenvolveram‑se exponencialmente, conduzindo muitas vezes a retumbantes fiascos [2]. A operação no Iraque decidida unilateralmente pelo presidente George W. Bush, levando o país a sair de uma ditadura para o mergulhar no caos e na violência, confirmou a impotência da ONU.
O carácter actual da reforma foi relançado por um primeiro relatório de peritos, versando as ameaças, os desafios e as mudanças, apresentado ao secretário-geral no fim de 2004, e depois pela publicação, a 21 de Março de 2005, do relatório de Kofi Annan [3]. Nele se encontra uma análise dos «desafios de um mundo em mudança»: a guerra entre Estados, a violência no interior dos Estados, a pobreza, as doenças infecciosas e a degradação do ambiente, as armas nucleares, radiológicas, químicas e biológicas, o terrorismo e o crime organizado. A tónica é assim colocada na prevenção, associando-se o objectivo de manutenção da paz às condições dessa paz.
O secretário-geral retoma no documento propostas muito concretas feitas pelo relatório de peritos no que se refere à regulamentação das armas (etiquetagem e traçabilidade das armas ligeiras, transparência dos stocks) e à definição do terrorismo («qualquer acto [...] cometido com intenção de causar a morte ou ferimentos graves a civis ou a não combatentes que tenha por objecto, pela sua natureza ou o seu contexto, intimidar uma população ou constranger um governo ou uma organização internacional a realizar um acto ou a abster‑se de o fazer»).
A propósito da paz, o secretário-geral, consciente dos riscos de degenerescência em que incorre um país saído de um conflito, propõe uma Comissão de Consolidação da Paz. Por fim, insiste em que todos os Estados membros assinem e ratifiquem um grande número de tratados sobre a protecção dos civis, os diferentes aspectos do desarmamento e, sobretudo, o Estatuto de Roma que confere autoridade ao Tribunal Penal Internacional. Mas não se tratará de um discurso marcado pela impotência, uma vez que o direito internacional, que continua a ser o enquadramento geral de qualquer reforma, deixa aos Estados soberanos plena liberdade em relação aos seus compromissos? E que impacte terá esta exortação do secretário-geral sobre os Estados ébrios de poder que, nos últimos anos, têm mostrado à saciedade que se encontram acima de todas as regras?
Contudo, por importantes que sejam todas as considerações relativas ao ambiente em que pode desenvolver‑se o mecanismo central da manutenção da paz, elas escondem mal os limites das propostas relativas à questão central, a saber, a da reforma institucional das Nações Unidas. O secretário-geral evita ir até ao fundo do problema. A categoria de membros permanentes não é posta em causa, apesar da usurpação de legitimidade por parte dos cinco Estados vencedores da Segunda Guerra Mundial.
Deste modo, contrariando um título promissor – “Democratizar o Conselho” (admissão de que a composição do mesmo rompe com a todavia proclamada igualdade entre os membros) –, não se perfila no horizonte qualquer avanço da democracia entre os povos. O estatuto de membro permanente e o direito de veto continuam a ser posições de poder, sem mais justificações, e isto apesar de aquilo que os beneficiários deste estatuto fizeram com este poder ao longo de meio século demonstrar suficientemente a necessidade de acabar com este sistema. A sua impunidade, a consolidação do seu poderio e a militarização a que conduziram o mundo pleiteiam sem hesitações a favor de um questionamento dos privilégios destes membros. A Alemanha, o Japão, o Brasil e a Índia (G4) são abertamente candidatos a este estatuto privilegiado, a par de muitos outros concorrentes.
Assim sendo, a ideia de permanência do poderio, a despeito do facto de este ser efémero por natureza, não sofre qualquer contestação. Os novos hoje admitidos neste clube por serem os poderosos do momento serão ultrapassados amanhã por outros mais poderosos. Mas mais importante ainda é contestar o poderio como critério de designação dos responsáveis. Toda a história da democracia consistiu em lutar contra a confiscação do poder pelos mais ricos ou os mais fortes. Através das transformações propostas, e apesar das aparências enganadoras do anúncio de “democratizar o Conselho”, esta estrutura mantém-se assim como um órgão aristocrático em ruptura com a democracia na sua essência igualitária.
Quanto ao veto, ele é objecto de muito debate. Os candidatos do G4 ao estatuto de membro permanente aceitam pagar o preço da sua entrada neste círculo de poder diferindo para daqui a quinze anos a obtenção do veto. Contudo, esta proposta revolta os africanos. Em grande medida, o que está em jogo este mês encontra‑se nas mãos destes, pois qualquer alteração, para ser aprovada, terá que reunir dois terços dos votos da Assembleia Geral. Seguidamente, para entrar em vigor, o texto deverá ser ratificado por dois terços dos Estados membros, entre os quais os cinco permanentes.
As propostas relativas à Assembleia Geral são muito frágeis, enquanto a que se refere a um Conselho dos Direitos do Homem para substituir a actual Comissão nada mais representa do que uma melhoria relativa, uma vez que as funções e poderes do novo órgão não estão definidos. Só uma reforma poderia trazer ao campo dos direitos do homem a eficácia que tantas vítimas de violações aguardam: a criação de um Tribunal Internacional dos Direitos do Homem. Seriam justiciáveis perante este tribunal os direitos declinados pelos pactos internacionais, sendo possíveis, em certas condições, os recursos individuais. A Europa dotou-se deste mecanismo com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, com sede em Estrasburgo desde 1959, o qual confere aos europeus uma imensa vantagem sobre os seres humanos dos outros continentes. É urgente colmatar esta falha, mas o Conselho dos Direitos do Homem proposto não será suficiente para o conseguir.
Por último, é certo que as causas da insegurança do mundo são seriamente analisadas no recente relatório, mas nem por isso a questão da segurança é relacionada com a da definição do bem comum no seio da comunidade política mundial. No entanto, é esse o principal desafio dos nossos tempos. As medidas propostas são, além disso, entravadas por dois factores: a preservada hegemonia dos que confiscaram o poder em 1945 e a universalidade do ultraliberalismo desde a queda do comunismo. Temos todos a perder com esta situação.
Para ser possível sonhar com um outro sistema institucional mundial, é imperativo que se comece por perguntar em que mundo vivemos e para onde queremos ir. A ideia que dominou o projecto de 1945 era a da segurança colectiva, mas as ameaças então tidas em conta eram interestatais, com forças militares contra forças militares. Entretanto as ameaças mudaram de natureza, o que é aliás sublinhado pelo alto responsável das Nações Unidas: disseminação das armas clássicas ou nucleares, meios rudimentares do terrorismo e genocídios a golpe de facas-do-mato são algumas das formas de violência que atravessam e ultrapassam os Estados. Quais as causas destas ameaças à segurança? A fome, as indecentes desigualdades de desenvolvimento, a desigualdade face às catástrofes naturais, e em particular climáticas, o encorajamento das grandes potências à venda de armas e a diversos tráficos, as ideologias de apoio ao racismo e às discriminações (grupos neonazis em numerosos países da Europa e na Rússia, identidades ameaçadoras como a “marfinidade” na Costa do Marfim, sionismo discriminatório contra os árabes em Israel, levando à recusa da paz na Palestina, islamismo agressivo).
Os seres humanos nunca deixarão, contudo, de estar confrontados com a sua violência. A que é propagada através da globalização vai deixando por onde passa porções cada vez maiores de excluídos, engendrando novas formas de violência e a entrada em cena de um terrorismo generalizado.
A resposta da ONU, ainda que retocada de acordo com as propostas avançadas por Kofi Annan, surge assim como profundamente insuficiente. A complexidade da sociedade mundial é ignorada. As Nações Unidas gerem (muito levemente) as relações entre os Estados. As intensas relações directamente estabelecidas pelas populações fora do controlo dos Estados desenvolvem-se numa pura relação de forças e em detrimento dos direitos humanos, que no entanto são afirmados. A necessidade urgente de colocar sob estatuto de protecção e de partilha equitativa os bens vitais (água, energia, conhecimentos, medicamentos, etc.) é estrangeira à Organização, apesar do alerta lançado a este respeito pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Se a ONU se revelar incorrigível, por as grandes potências não quererem ceder nada do seu poder e continuarem a captar o essencial dos recursos mundiais, então é necessário inventar, com urgência, uma Organização da Comunidade Mundial. Seria bastante prudente que os Estados mais sacrificados pela globalização pensassem em abandonar a ONU para nesse mesmo instante fundar uma outra organização à medida das necessidades.
Como seria um projecto livremente concebido? Sediada em Jerusalém, como propôs Régis Debray, ou em África ou ainda na América Latina para simbolicamente a descentrar do Ocidente, uma organização universalmente refundada teria como objectivo a construção de uma comunidade política universal, não em substituição das comunidades nacionais mas complementando-as, a fim de responder à complexidade de uma sociedade que mistura relações interestatais e interindividuais. O desafio central de uma tal organização seria a definição e defesa do bem comum dos povos. Através deste projecto, a manutenção da paz poderia surgir como algo diferente de uma terapêutica tardia e muitas vezes desesperada.
Para responder a esta lógica, a arquitectura institucional poderia ser concebida em quatro órgãos políticos. A Assembleia Geral representaria os Estados. Uma segunda Assembleia deveria responder à muito difícil representação das populações; não seria directamente eleita, pois isso abriria a porta a todas as manipulações. Uma instância reservada à sociedade civil através das organizações não governamentais (ONG) deve também ser posta de lado, na medida em que estas são autolegitimadas e muito desigualmente repartidas geograficamente. Uma solução aceitável, pelo menos por agora, seria que a segunda Assembleia emanasse dos parlamentos nacionais. Cada Parlamento enviaria a esse organismo um número de membros, proporcional à sua população, mas segundo critérios que permitissem evitar as sobre ou as sub-representações. Neste sentido, os Estados muito pequenos deveriam agrupar-se para terem uma representação, e isso seria salutar pois o modelo “um Estado, uma voz” mantido pela primeira assembleia, e que lhes é muito favorável, seria assim corrigido.
Estas duas assembleias trabalhariam juntas e em comissões, com base num modelo bicameral, em questões políticas mas também económicas, sociais, militares e culturais de alcance mundial. Os textos votados teriam força de lei, deixando de ser considerados soft law. O Conselho Económico e Social desapareceria, bem como o Conselho de Tutela [4].
A estas duas assembleias corresponderiam dois conselhos, um encarregado das acções de prevenção (não militares) de paz, e o outro encarregado das intervenções em caso de a paz ser quebrada. Os membros do primeiro conselho (vinte e cinco) seriam compostos por parlamentares eleitos apenas pela segunda assembleia e entre os membros desta, sem distinção entre membros e por um prazo igual para todos, estando em particular encarregado de levar à prática as medidas tomadas no âmbito da Organização da Comunidade Mundial em benefício do bem comum.
O segundo conselho, encarregado da segurança, incluiria os representantes de vinte e cinco Estados eleitos pelas duas assembleias reunidas. Teriam, todos eles, o mesmo tempo de mandato e as mesmas prerrogativas de decisão. A categoria de permanentes e o veto seriam, portanto, suprimidos. Seria todavia necessário imaginar como resolver o paradoxo que pode verificar-se pelo facto de se confiar a responsabilidade da paz a Estados com interesse em fazer a guerra. Neste sentido, deveria haver uma cláusula de inelegibilidade para este conselho que barrasse os Estados que optassem por orçamentos militares exorbitantes, em relação às suas despesas sociais, ou que tivessem tido nos dois anos anteriores à eleição um comportamento comprovado de agressão.
Os órgãos principais teriam ainda um secretário-geral responsável pela sua acção perante as duas assembleias. Quanto ao Tribunal Internacional de Justiça, o seu estatuto seria reformado de modo a fundi-lo com o Tribunal Penal Internacional, passando a competência desta dupla jurisdição a ser obrigatória [5]. Este dispositivo judiciário seria completado por um Tribunal Internacional dos Direitos do Homem.
Fora dos círculos governamentais, esta reflexão mostra-se fecunda [6]. Estas propostas são aqui apresentadas para serem discutidas. Os três imperativos por ela expressos – necessidade de democracia (pelo desaparecimento de qualquer prerrogativa em beneficio de alguns Estados), necessidade de direito (pelo reforço dos competências das assembleias gerais) e necessidade de justiça (pela competência obrigatória das jurisdições internacionais) – não podem ser ignorados por muito mais tempo.
[1] É disso testemunha a obra de 950 páginas de Joachim Müller, Reforming the United Nations. The Quiet Revolution, Kluwer Law International, Haia, 2001.
[2] Maurice Bertrand, L’ONU, La Découverte, Paris, 2004 (5ª edição).
[3] In larger freedom: towards development, security and human rights for all. Relatório do secretário‑Geral das Nações Unidas. Setembro de 2005.
[4] O Conselho de Tutela, composto por membros que administram territórios sob tutela e por outros membros (artigo 86 da Carta), é um dos órgãos principais da Organização das Nações Unidas, estando encarregado de vigiar a administração dos territórios sob tutela. Com a independência de Palau, último território nessa situação, o Conselho decidiu oficialmente suspender as suas actividades a partir de 1 de Novembro de 1994.
[5] O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) julga os diferendos entre Estados. O Tribunal Penal Internacional (TPI) julga, em certas condições, os indivíduos suspeitos de determinados crimes internacionais. Ler Anne‑Cécile Robert, Justice internationale, politique et droit,
A reforma das Nações Unidas é uma serpente marinha a envelhecer [1]. A burocracia da ONU, avolumada com o passar dos anos, é acusada de ineficácia. Dominada pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, o Conselho de Segurança, órgão principal encarregado da manutenção da paz, não cumpriu a sua tarefa e deixou que os conflitos se multiplicassem, optando por intervir de forma arbitrária. Os “dividendos da paz”, anunciados com o fim da Guerra Fria, saldaram-se num logro e, além disso, as vendas de armas voltaram a disparar por as grandes potências terem optado por militarizar as suas economias. As operações de manutenção da paz desenvolveram‑se exponencialmente, conduzindo muitas vezes a retumbantes fiascos [2]. A operação no Iraque decidida unilateralmente pelo presidente George W. Bush, levando o país a sair de uma ditadura para o mergulhar no caos e na violência, confirmou a impotência da ONU.
O carácter actual da reforma foi relançado por um primeiro relatório de peritos, versando as ameaças, os desafios e as mudanças, apresentado ao secretário-geral no fim de 2004, e depois pela publicação, a 21 de Março de 2005, do relatório de Kofi Annan [3]. Nele se encontra uma análise dos «desafios de um mundo em mudança»: a guerra entre Estados, a violência no interior dos Estados, a pobreza, as doenças infecciosas e a degradação do ambiente, as armas nucleares, radiológicas, químicas e biológicas, o terrorismo e o crime organizado. A tónica é assim colocada na prevenção, associando-se o objectivo de manutenção da paz às condições dessa paz.
O secretário-geral retoma no documento propostas muito concretas feitas pelo relatório de peritos no que se refere à regulamentação das armas (etiquetagem e traçabilidade das armas ligeiras, transparência dos stocks) e à definição do terrorismo («qualquer acto [...] cometido com intenção de causar a morte ou ferimentos graves a civis ou a não combatentes que tenha por objecto, pela sua natureza ou o seu contexto, intimidar uma população ou constranger um governo ou uma organização internacional a realizar um acto ou a abster‑se de o fazer»).
A propósito da paz, o secretário-geral, consciente dos riscos de degenerescência em que incorre um país saído de um conflito, propõe uma Comissão de Consolidação da Paz. Por fim, insiste em que todos os Estados membros assinem e ratifiquem um grande número de tratados sobre a protecção dos civis, os diferentes aspectos do desarmamento e, sobretudo, o Estatuto de Roma que confere autoridade ao Tribunal Penal Internacional. Mas não se tratará de um discurso marcado pela impotência, uma vez que o direito internacional, que continua a ser o enquadramento geral de qualquer reforma, deixa aos Estados soberanos plena liberdade em relação aos seus compromissos? E que impacte terá esta exortação do secretário-geral sobre os Estados ébrios de poder que, nos últimos anos, têm mostrado à saciedade que se encontram acima de todas as regras?
Contudo, por importantes que sejam todas as considerações relativas ao ambiente em que pode desenvolver‑se o mecanismo central da manutenção da paz, elas escondem mal os limites das propostas relativas à questão central, a saber, a da reforma institucional das Nações Unidas. O secretário-geral evita ir até ao fundo do problema. A categoria de membros permanentes não é posta em causa, apesar da usurpação de legitimidade por parte dos cinco Estados vencedores da Segunda Guerra Mundial.
Deste modo, contrariando um título promissor – “Democratizar o Conselho” (admissão de que a composição do mesmo rompe com a todavia proclamada igualdade entre os membros) –, não se perfila no horizonte qualquer avanço da democracia entre os povos. O estatuto de membro permanente e o direito de veto continuam a ser posições de poder, sem mais justificações, e isto apesar de aquilo que os beneficiários deste estatuto fizeram com este poder ao longo de meio século demonstrar suficientemente a necessidade de acabar com este sistema. A sua impunidade, a consolidação do seu poderio e a militarização a que conduziram o mundo pleiteiam sem hesitações a favor de um questionamento dos privilégios destes membros. A Alemanha, o Japão, o Brasil e a Índia (G4) são abertamente candidatos a este estatuto privilegiado, a par de muitos outros concorrentes.
Assim sendo, a ideia de permanência do poderio, a despeito do facto de este ser efémero por natureza, não sofre qualquer contestação. Os novos hoje admitidos neste clube por serem os poderosos do momento serão ultrapassados amanhã por outros mais poderosos. Mas mais importante ainda é contestar o poderio como critério de designação dos responsáveis. Toda a história da democracia consistiu em lutar contra a confiscação do poder pelos mais ricos ou os mais fortes. Através das transformações propostas, e apesar das aparências enganadoras do anúncio de “democratizar o Conselho”, esta estrutura mantém-se assim como um órgão aristocrático em ruptura com a democracia na sua essência igualitária.
Quanto ao veto, ele é objecto de muito debate. Os candidatos do G4 ao estatuto de membro permanente aceitam pagar o preço da sua entrada neste círculo de poder diferindo para daqui a quinze anos a obtenção do veto. Contudo, esta proposta revolta os africanos. Em grande medida, o que está em jogo este mês encontra‑se nas mãos destes, pois qualquer alteração, para ser aprovada, terá que reunir dois terços dos votos da Assembleia Geral. Seguidamente, para entrar em vigor, o texto deverá ser ratificado por dois terços dos Estados membros, entre os quais os cinco permanentes.
As propostas relativas à Assembleia Geral são muito frágeis, enquanto a que se refere a um Conselho dos Direitos do Homem para substituir a actual Comissão nada mais representa do que uma melhoria relativa, uma vez que as funções e poderes do novo órgão não estão definidos. Só uma reforma poderia trazer ao campo dos direitos do homem a eficácia que tantas vítimas de violações aguardam: a criação de um Tribunal Internacional dos Direitos do Homem. Seriam justiciáveis perante este tribunal os direitos declinados pelos pactos internacionais, sendo possíveis, em certas condições, os recursos individuais. A Europa dotou-se deste mecanismo com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, com sede em Estrasburgo desde 1959, o qual confere aos europeus uma imensa vantagem sobre os seres humanos dos outros continentes. É urgente colmatar esta falha, mas o Conselho dos Direitos do Homem proposto não será suficiente para o conseguir.
Por último, é certo que as causas da insegurança do mundo são seriamente analisadas no recente relatório, mas nem por isso a questão da segurança é relacionada com a da definição do bem comum no seio da comunidade política mundial. No entanto, é esse o principal desafio dos nossos tempos. As medidas propostas são, além disso, entravadas por dois factores: a preservada hegemonia dos que confiscaram o poder em 1945 e a universalidade do ultraliberalismo desde a queda do comunismo. Temos todos a perder com esta situação.
Para ser possível sonhar com um outro sistema institucional mundial, é imperativo que se comece por perguntar em que mundo vivemos e para onde queremos ir. A ideia que dominou o projecto de 1945 era a da segurança colectiva, mas as ameaças então tidas em conta eram interestatais, com forças militares contra forças militares. Entretanto as ameaças mudaram de natureza, o que é aliás sublinhado pelo alto responsável das Nações Unidas: disseminação das armas clássicas ou nucleares, meios rudimentares do terrorismo e genocídios a golpe de facas-do-mato são algumas das formas de violência que atravessam e ultrapassam os Estados. Quais as causas destas ameaças à segurança? A fome, as indecentes desigualdades de desenvolvimento, a desigualdade face às catástrofes naturais, e em particular climáticas, o encorajamento das grandes potências à venda de armas e a diversos tráficos, as ideologias de apoio ao racismo e às discriminações (grupos neonazis em numerosos países da Europa e na Rússia, identidades ameaçadoras como a “marfinidade” na Costa do Marfim, sionismo discriminatório contra os árabes em Israel, levando à recusa da paz na Palestina, islamismo agressivo).
Os seres humanos nunca deixarão, contudo, de estar confrontados com a sua violência. A que é propagada através da globalização vai deixando por onde passa porções cada vez maiores de excluídos, engendrando novas formas de violência e a entrada em cena de um terrorismo generalizado.
A resposta da ONU, ainda que retocada de acordo com as propostas avançadas por Kofi Annan, surge assim como profundamente insuficiente. A complexidade da sociedade mundial é ignorada. As Nações Unidas gerem (muito levemente) as relações entre os Estados. As intensas relações directamente estabelecidas pelas populações fora do controlo dos Estados desenvolvem-se numa pura relação de forças e em detrimento dos direitos humanos, que no entanto são afirmados. A necessidade urgente de colocar sob estatuto de protecção e de partilha equitativa os bens vitais (água, energia, conhecimentos, medicamentos, etc.) é estrangeira à Organização, apesar do alerta lançado a este respeito pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Se a ONU se revelar incorrigível, por as grandes potências não quererem ceder nada do seu poder e continuarem a captar o essencial dos recursos mundiais, então é necessário inventar, com urgência, uma Organização da Comunidade Mundial. Seria bastante prudente que os Estados mais sacrificados pela globalização pensassem em abandonar a ONU para nesse mesmo instante fundar uma outra organização à medida das necessidades.
Como seria um projecto livremente concebido? Sediada em Jerusalém, como propôs Régis Debray, ou em África ou ainda na América Latina para simbolicamente a descentrar do Ocidente, uma organização universalmente refundada teria como objectivo a construção de uma comunidade política universal, não em substituição das comunidades nacionais mas complementando-as, a fim de responder à complexidade de uma sociedade que mistura relações interestatais e interindividuais. O desafio central de uma tal organização seria a definição e defesa do bem comum dos povos. Através deste projecto, a manutenção da paz poderia surgir como algo diferente de uma terapêutica tardia e muitas vezes desesperada.
Para responder a esta lógica, a arquitectura institucional poderia ser concebida em quatro órgãos políticos. A Assembleia Geral representaria os Estados. Uma segunda Assembleia deveria responder à muito difícil representação das populações; não seria directamente eleita, pois isso abriria a porta a todas as manipulações. Uma instância reservada à sociedade civil através das organizações não governamentais (ONG) deve também ser posta de lado, na medida em que estas são autolegitimadas e muito desigualmente repartidas geograficamente. Uma solução aceitável, pelo menos por agora, seria que a segunda Assembleia emanasse dos parlamentos nacionais. Cada Parlamento enviaria a esse organismo um número de membros, proporcional à sua população, mas segundo critérios que permitissem evitar as sobre ou as sub-representações. Neste sentido, os Estados muito pequenos deveriam agrupar-se para terem uma representação, e isso seria salutar pois o modelo “um Estado, uma voz” mantido pela primeira assembleia, e que lhes é muito favorável, seria assim corrigido.
Estas duas assembleias trabalhariam juntas e em comissões, com base num modelo bicameral, em questões políticas mas também económicas, sociais, militares e culturais de alcance mundial. Os textos votados teriam força de lei, deixando de ser considerados soft law. O Conselho Económico e Social desapareceria, bem como o Conselho de Tutela [4].
A estas duas assembleias corresponderiam dois conselhos, um encarregado das acções de prevenção (não militares) de paz, e o outro encarregado das intervenções em caso de a paz ser quebrada. Os membros do primeiro conselho (vinte e cinco) seriam compostos por parlamentares eleitos apenas pela segunda assembleia e entre os membros desta, sem distinção entre membros e por um prazo igual para todos, estando em particular encarregado de levar à prática as medidas tomadas no âmbito da Organização da Comunidade Mundial em benefício do bem comum.
O segundo conselho, encarregado da segurança, incluiria os representantes de vinte e cinco Estados eleitos pelas duas assembleias reunidas. Teriam, todos eles, o mesmo tempo de mandato e as mesmas prerrogativas de decisão. A categoria de permanentes e o veto seriam, portanto, suprimidos. Seria todavia necessário imaginar como resolver o paradoxo que pode verificar-se pelo facto de se confiar a responsabilidade da paz a Estados com interesse em fazer a guerra. Neste sentido, deveria haver uma cláusula de inelegibilidade para este conselho que barrasse os Estados que optassem por orçamentos militares exorbitantes, em relação às suas despesas sociais, ou que tivessem tido nos dois anos anteriores à eleição um comportamento comprovado de agressão.
Os órgãos principais teriam ainda um secretário-geral responsável pela sua acção perante as duas assembleias. Quanto ao Tribunal Internacional de Justiça, o seu estatuto seria reformado de modo a fundi-lo com o Tribunal Penal Internacional, passando a competência desta dupla jurisdição a ser obrigatória [5]. Este dispositivo judiciário seria completado por um Tribunal Internacional dos Direitos do Homem.
Fora dos círculos governamentais, esta reflexão mostra-se fecunda [6]. Estas propostas são aqui apresentadas para serem discutidas. Os três imperativos por ela expressos – necessidade de democracia (pelo desaparecimento de qualquer prerrogativa em beneficio de alguns Estados), necessidade de direito (pelo reforço dos competências das assembleias gerais) e necessidade de justiça (pela competência obrigatória das jurisdições internacionais) – não podem ser ignorados por muito mais tempo.
[1] É disso testemunha a obra de 950 páginas de Joachim Müller, Reforming the United Nations. The Quiet Revolution, Kluwer Law International, Haia, 2001.
[2] Maurice Bertrand, L’ONU, La Découverte, Paris, 2004 (5ª edição).
[3] In larger freedom: towards development, security and human rights for all. Relatório do secretário‑Geral das Nações Unidas. Setembro de 2005.
[4] O Conselho de Tutela, composto por membros que administram territórios sob tutela e por outros membros (artigo 86 da Carta), é um dos órgãos principais da Organização das Nações Unidas, estando encarregado de vigiar a administração dos territórios sob tutela. Com a independência de Palau, último território nessa situação, o Conselho decidiu oficialmente suspender as suas actividades a partir de 1 de Novembro de 1994.
[5] O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) julga os diferendos entre Estados. O Tribunal Penal Internacional (TPI) julga, em certas condições, os indivíduos suspeitos de determinados crimes internacionais. Ler Anne‑Cécile Robert, Justice internationale, politique et droit,
Le Monde diplomatique, Abril de 2003 [edição brasileira: Justiça internacional: entre a política
e o direito, Maio de 2003].
[6] Daniele Archibugi e David Held (sob a dir. de), Cosmopolitan Democracy. An Agenda for a New World Order, Polity Press, Cambridge, 1995
Monique Chemillier-Gendreau
http://www.infoalternativa.org/mundo/mundo191.htm
[6] Daniele Archibugi e David Held (sob a dir. de), Cosmopolitan Democracy. An Agenda for a New World Order, Polity Press, Cambridge, 1995
Monique Chemillier-Gendreau
http://www.infoalternativa.org/mundo/mundo191.htm
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