terça-feira, novembro 28, 2006

“Dirigentes ao nosso serviço”...

No seu livro Nickel and Dimed: Undercover in Low Wage USA (2002), editado em francês com o título L’Amérique pauvre (Grasset, Paris, 2004), Barbara Ehrenreich relata a sua experiência de assalariada da Wal­‑Mart auferindo um salário horário de sete dólares. A passagem que aqui transcrevemos refere-se à imagem que a empresa deseja transmitir de si mesma.

Começamos com um vídeo, de cerca de quinze minutos, dedicado à história e à filosofia da Wal-Mart ou, como diria um antropólogo, ao Culto de Sam. Sam Walton, jovem e de uniforme, regressa da guerra; abre uma loja que é uma espécie de bazar; casa-se e torna-se pai de quatro lindos rebentos; recebe das mãos do presidente Bush pai a Medalha da Liberdade – e morre pouco depois, o que provoca um florilégio de discursos fúnebres em louvor do falecido. Os negócios, porém, prosseguem – e de que maneira! A curva ascensional da história da Wal­‑Mart é vertiginosa, servindo apenas as pausas, nessa ascensão, para estabelecer novos recordes na história do expansionismo da empresa.

1992: a Wal-Mart torna-se o maior vendedor a retalho mundial. 1997: o volume de negócios ultrapassa os 100 mil milhões de dólares. 1998: o número de “associados” da Wal-Mart atinge as 825.000 pessoas, transformando esta empresa no maior empregador dos Estados Unidos. A cada novo recorde atingido, um videoclip mostra multidões de clientes, chusmas de “associados”, novos armazéns devidamente apetrechados com parques de estacionamento. Uma voz repete sem parar – ou um letreiro apregoa três princípios que nada têm a ver uns com os outros, de tal forma, aliás, que chegam a ser uma provocação à inteligência: “Respeito pelo indivíduo, ir
para além das expectativas do cliente, busca da excelência”.

É no “respeito pelo indivíduo” que nós, os “associados”, entramos em cena, porque, por mais vasta que a Wal­‑Mart possa ser e por muito pequenos que nós sejamos como indivíduos, a verdade é que tudo depende de nós. Sam dizia sempre, e vemo-lo repetindo isso no vídeo, que «as melhores ideias vêm dos associados» – a ideia, por exemplo, de um empregado de certa idade (perdão, um “associado”) se encarregar de receber à porta do armazém, pessoalmente, cada um dos clientes. Três vezes durante a sessão de orientação, que começa às 3 da tarde e se prolonga até por volta das 11, repetem-nos que essa ideia nasceu de um simples “associado”. Quem sabe, portanto, se na cabeça de cada um de nós não haverá uma possível revolução no ramo da venda a retalho? Porque as nossas ideias são bem-vindas, e mais do que bem-vindas, não devendo nós pensar que os nossos dirigentes são patrões, mas sim que todos eles são «dirigentes ao nosso serviço» e ao serviço dos clientes. Naturalmente, entre os associados e os dirigentes ao seu serviço nem tudo são rosas em todas as circunstâncias. Um videoclip sobre a “honestidade do associado” mostra um caixa, apanhado em flagrante delito pelas câmaras de vigilância, metendo ao bolso algumas notas roubadas na caixa registadora; em fundo ouve-se um tambor rufando de forma ameaçadora, ao mesmo tempo que o infractor é conduzido de algemas nos punhos e ficamos a saber que foi condenado a quatro anos de cadeia.

O tema das tensões ocultas, ultrapassadas graças à reflexão e a uma atitude positiva, prolonga-se num videoclip de doze minutos, intitulado “Você escolheu um lugar de trabalho formidável”. Nos seus depoimentos, diversos “associados” confirmam que «existe de facto a bem conhecida atmosfera familiar da Wal­‑Mart», levando isso à conclusão de que não precisamos de sindicatos. Outrora, em tempos passados, os sindicatos tinham razão de ser na sociedade americana, mas hoje «já não têm grande coisa a propor aos trabalhadores», motivo pelo qual as pessoas os abandonam «em massa». Senão, vejam: a Wal-Mart está em plena expansão e os sindicatos estão em pleno declínio.

Mas mesmo assim vão-nos avisando que «desde há muitos anos os sindicatos têm a Wal-Mart em mira». E porquê? Para sacarem quotas, evidentemente. Imaginem só a quantidade de coisas que vocês perdem aderindo a um sindicato: antes de mais, as quotizações, que se elevam a 20 dólares por mês, «e às vezes a muito mais»; depois, o «voto na matéria», visto o sindicato impor que são eles a fazer as negociações em vosso nome; por último, uma possível perda dos vossos salários e regalias, porque estes poderão ser «postos em jogo na mesa das negociações». O que devem fazer é perguntar – imagino que alguns dos meus colegas que estão à volta da mesa e ainda não têm vinte anos o irão fazer – por que motivo são autorizados a circular livremente no nosso país demónios dessa laia, da laia dos sindicalistas.
Barbara Ehrenreich
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/usa/usa130.htm

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