Entre a realidade e a imagem que dela é produzida vai às vezes uma grande distância. Tendemos a ser selectivos no que olhamos e no que conhecemos: vemos da realidade aquilo que estamos dispostos a ver, aquilo que os media escolhem mostrar, o que as ciências sociais consideram digno de ser nomeado e estudado e aquilo que, a cada momento, a agenda política vai elegendo como merecedor da nossa atenção.
Quanto mais distorcida é a nossa visão do real, quanto mais determinada pelo que nos seria conveniente que fosse ou pela caricatura ora folclórica, ora cínica, ora sensacionalista que certa comunicação social cria das misérias do mundo, mais difícil é termos uma estratégia de transformação que vá ao fundo dessa realidade, que não tenha medo da complexidade da vida, que esteja atenta às novas formas de sofrimento social. Sem as conhecermos e nomearmos, nunca estaremos munidos para as combater.
Acaba de sair em França um livro – La France Invisible, coordenado por Stéphane Béaud, Joseph Confaureux e Jade Liindgaard – que pretende dar visibilidade a situações de exploração, de discriminação e de alienação que se vão disseminando. O propósito da obra é claro: falar do país de que não falarão a maioria dos políticos que se vai candidatar às próximas presidenciais de 2007, trazer à luz do dia o quotidiano dessa imensa maioria que vê a sua vida adiada e desprezada pela fúria e pela destruição neoliberal. A ideia, de resto, não é nova: já no final da década de 90 Pierre Bourdieu editava uma obra que viria a marcar o movimento social: em A Miséria do Mundo, um grupo de investigadores dava voz às vítimas da dissolução da sociedade salarial, da exclusão xenófoba, da destruição do Estado Social, tratando-as não como distantes objectos de estudo mas como sujeitos de indignação.
Do livro agora publicado são muitos os protagonistas: banlieusards (ou os jovens relegados dos subúrbios), deslocalizados (ou as vítimas da globalização capitalista e da sua divisão internacional do trabalho), desmotivados (os que vivem para um trabalho alienante e desmotivador), dissimulados (aqueles que têm de esconder quem são para não sofrerem as pequenas violências quotidianas ou os grandes ódios que gera a discriminação homófoba), presos (vitimas do abuso e da morte social nas cadeias), domesticados (ou mulheres vítimas de uma forçada opção pelo trabalho doméstico que oculta a ausência de empregos), intermitentes (os explorados da flexibilização e da precarização do trabalho e da vida), jovens no trabalho (vistos com desconfiança pelos trabalhadores integrados mais velhos, que frequentemente os tratam como concorrência desleal sem consciência de classe), precários do público (ou o novo perfil, crescentemente dominante, do funcionário público a recibo verde ou contrato precário), pressionados (aqueles a quem os patrões exigem corpo e alma para manterem o “privilégio” de ter um emprego), trabalhadores na sombra (os que lutam pela sobrevivência nas obscuras fileiras da economia subterrânea e paralela), privatizados (ou os órfãos do serviço público e os esquecidos do Estado Social), renovados à força (vítimas de realojamentos forçados que, sob o argumento da recuperação urbana dos centros, enviam os pobres para as periferias, destruindo as suas redes de solidariedade e vizinhança), estagiários (os protagonistas do trabalho gratuito, a escravatura do séc. XXI), sobreendividados (ou as vítimas dos juros e dos apelos ao consumo omnívoro), velhos pobres (pensionistas que engrossam a miséria e a solidão), sem-abrigo (os que nunca se “sentem em casa”), desempregados (soldados cada vez mais numerosos do exército de reserva), entre tantos outros...
É de todas estas vidas, que não têm existência nos discursos sobre a competitividade ou o fetiche da inovação tecnológica, que o livro fala: do lado sofrido da regressão civilizacional que o ultra-liberalismo tem provocado. A lição é válida para Franca como para Portugal, com todas as diferenças: traçando novas relações entre investigação e transformação sociais, a esquerda de hoje tem de estar atenta e conhecer todas as formas de opressão, para pensar como pode o sofrimento tornar-se mobilização e combate. Porque nenhuma política revolucionária o é verdadeiramente se não partir da vida quotidiana. O socialismo é um horizonte, é certo, mas tem de ser também uma política concreta.
José Soeiro
http://www.infoalternativa.org/cultura/livro025.htm
Quanto mais distorcida é a nossa visão do real, quanto mais determinada pelo que nos seria conveniente que fosse ou pela caricatura ora folclórica, ora cínica, ora sensacionalista que certa comunicação social cria das misérias do mundo, mais difícil é termos uma estratégia de transformação que vá ao fundo dessa realidade, que não tenha medo da complexidade da vida, que esteja atenta às novas formas de sofrimento social. Sem as conhecermos e nomearmos, nunca estaremos munidos para as combater.
Acaba de sair em França um livro – La France Invisible, coordenado por Stéphane Béaud, Joseph Confaureux e Jade Liindgaard – que pretende dar visibilidade a situações de exploração, de discriminação e de alienação que se vão disseminando. O propósito da obra é claro: falar do país de que não falarão a maioria dos políticos que se vai candidatar às próximas presidenciais de 2007, trazer à luz do dia o quotidiano dessa imensa maioria que vê a sua vida adiada e desprezada pela fúria e pela destruição neoliberal. A ideia, de resto, não é nova: já no final da década de 90 Pierre Bourdieu editava uma obra que viria a marcar o movimento social: em A Miséria do Mundo, um grupo de investigadores dava voz às vítimas da dissolução da sociedade salarial, da exclusão xenófoba, da destruição do Estado Social, tratando-as não como distantes objectos de estudo mas como sujeitos de indignação.
Do livro agora publicado são muitos os protagonistas: banlieusards (ou os jovens relegados dos subúrbios), deslocalizados (ou as vítimas da globalização capitalista e da sua divisão internacional do trabalho), desmotivados (os que vivem para um trabalho alienante e desmotivador), dissimulados (aqueles que têm de esconder quem são para não sofrerem as pequenas violências quotidianas ou os grandes ódios que gera a discriminação homófoba), presos (vitimas do abuso e da morte social nas cadeias), domesticados (ou mulheres vítimas de uma forçada opção pelo trabalho doméstico que oculta a ausência de empregos), intermitentes (os explorados da flexibilização e da precarização do trabalho e da vida), jovens no trabalho (vistos com desconfiança pelos trabalhadores integrados mais velhos, que frequentemente os tratam como concorrência desleal sem consciência de classe), precários do público (ou o novo perfil, crescentemente dominante, do funcionário público a recibo verde ou contrato precário), pressionados (aqueles a quem os patrões exigem corpo e alma para manterem o “privilégio” de ter um emprego), trabalhadores na sombra (os que lutam pela sobrevivência nas obscuras fileiras da economia subterrânea e paralela), privatizados (ou os órfãos do serviço público e os esquecidos do Estado Social), renovados à força (vítimas de realojamentos forçados que, sob o argumento da recuperação urbana dos centros, enviam os pobres para as periferias, destruindo as suas redes de solidariedade e vizinhança), estagiários (os protagonistas do trabalho gratuito, a escravatura do séc. XXI), sobreendividados (ou as vítimas dos juros e dos apelos ao consumo omnívoro), velhos pobres (pensionistas que engrossam a miséria e a solidão), sem-abrigo (os que nunca se “sentem em casa”), desempregados (soldados cada vez mais numerosos do exército de reserva), entre tantos outros...
É de todas estas vidas, que não têm existência nos discursos sobre a competitividade ou o fetiche da inovação tecnológica, que o livro fala: do lado sofrido da regressão civilizacional que o ultra-liberalismo tem provocado. A lição é válida para Franca como para Portugal, com todas as diferenças: traçando novas relações entre investigação e transformação sociais, a esquerda de hoje tem de estar atenta e conhecer todas as formas de opressão, para pensar como pode o sofrimento tornar-se mobilização e combate. Porque nenhuma política revolucionária o é verdadeiramente se não partir da vida quotidiana. O socialismo é um horizonte, é certo, mas tem de ser também uma política concreta.
José Soeiro
http://www.infoalternativa.org/cultura/livro025.htm
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