segunda-feira, novembro 06, 2006

Soberania dos Estados e soberania dos povos

Como foi possível que tivesse surgido um conceito tão estranho e contestável como o de um pretenso “direito de ingerência”, quando no âmago das Nações Unidas se encontra o conceito de soberania, destinado a proteger os Estados de intervenções externas e, desse modo, a salvaguardar a paz? Desde a década de 1960 que os defensores dos direitos humanos consideravam que a proibição de qualquer forma de ingerência não lhes dizia respeito, uma vez que se aplicava às relações de Estado a Estado. Depois, em vez de afirmarem que quando eram enviados em socorro de vítimas de crimes ou de catástrofes não cometiam qualquer ingerência, tais defensores dos direitos humanos optaram por legitimar a ingerência praticada em nome dos seus motivos (os direitos humanos). Por fim, alguns começaram a afirmar que, na prossecução de tais objectivos, o direito de ingerência pertencia aos próprios Estados...

A Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) pensou ter apenas muito prudentemente levantado a tampa quando adoptou, a 8 de Setembro de 1988, a Resolução 43/131 autorizando as organizações intergovernamentais e não governamentais (ONG) a prestar assistência às «vítimas das catástrofes naturais e de situações de emergência». No entanto, uma vez que levar à prática este “direito de ingerência” carece de meios, são os países dominantes que o utilizam à sua vontade. Tanto na ex-Jugoslávia como no Iraque, as grandes potências (e especialmente os Estados Unidos) muito rapidamente ocuparam o espaço assim criado, com o apoio da ONU [1]...

Quando se tratou de aplicar os Acordos de Dayton [2] foi o Conselho de Segurança que mandatou a Aliança Atlântica com a missão de manter a paz (ou seja, de fazer aquilo para que a ONU foi fundada), tendo a Força Internacional de Aplicação dos Acordos (IFOR) sido colocada sob comando da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em flagrante contradição com a Carta e o seu artigo 53 [3]. O pretenso direito de ingerência, que no concreto só pode ser exercido pelos Estados mais poderosos, veio deste modo restabelecer o velho imperialismo de antanho, tingindo-o de cores morais [4].

Ora, a soberania continua a ser, em muitos países do Sul, em África ou na América Latina, uma reivindicação das populações que combatem a injustiça social ou o imperialismo de vizinhos ou padrinhos poderosos. O Fórum Social Africano, por exemplo, reivindica a soberania dos povos sobre as riquezas naturais e o reforço do Estado como poder público protector. Com efeito, o Estado continua muitas vezes a representar o quadro, pelo menos potencial, de exercício do poder democrático e de afirmação dos povos, podendo além disso constituir um obstáculo à penetração das empresas transnacionais. Essa obstaculização tanto pode resultar do facto de, por ser dotado de estruturas sólidas de defesa dos direitos dos cidadãos, resistir a essa intrusão – como ficou demonstrado por ocasião das medidas tomadas na América Latina contra as multinacionais da água e do petróleo [5]; como, pelo contrário, do facto de, por ser totalmente ineficaz e desorganizado, se tornar terrivelmente instável e imprevisível (caso frequente em África, nomeadamente). É por esse motivo que o comércio livre e os governos ao seu serviço incentivam a estabilização institucional nos Estados enfraquecidos e o abandono de competências nos Estados “fortes”. Há todavia um Estado – os Estados Unidos – que parece beneficiar de todos os atributos clássicos da soberania.

O princípio de soberania só faz sentido, realmente, se for precisado aquilo a que se aplica: os Estados ou os povos. Quando, em 1789, a Assembleia Nacional francesa proclamou que a soberania reside «essencialmente na nação» [6], a escolha foi clara. Mas os dois séculos seguintes consagraram progressivamente uma “soberania dos Estados”. Esta deriva foi facilitada pelo desenvolvimento das conquistas coloniais e imperiais nos séculos XIX e XX: os conquistadores pretendiam fazer beneficiar de estruturas estatais povos que não eram “capazes” de as conceber por si próprios.

A Carta das Nações Unidas consagra esta visão criando um agrupamento de Estados (capítulo 2, artigos 3 e 4), ainda que o preâmbulo da Carta comece pela célebre fórmula «Nós, povos das Nações Unidas». Os textos fundadores da organização tão depressa evocam os povos (no preâmbulo), como as nações ou os Estados [7]. Evidentemente, os redactores não ignoravam os agitados debates suscitados por estes conceitos, mas não sentiram necessidade de se deterem neles. Entre outros aspectos, esta indefinição permitia­‑lhes não abordar a questão dos povos colonizados e das minorias autóctones.

Além do mais, é justamente por a ONU ter como membros Estados que o artigo 2, parágrafo 7 da Carta estabelece o princípio de que nada «autoriza as Nações Unidas a intervirem nos assuntos que relevam essencialmente da competência nacional de um Estado». Quanto ao artigo 53, esclarece que «nenhuma acção coerciva poderá ser empreendida em virtude de acordos regionais ou por organismos regionais». A proibição de qualquer atentado à soberania é, assim, claramente entendida como soberania dos Estados, impondo­‑se à própria ONU (com excepção do que se refere ao capítulo 7 da Carta e às iniciativas em caso de ameaça à paz, rompimento da paz e acto de agressão).

O fosso entre soberania dos Estados e soberania dos povos encontra-se no debate sobre as renúncias de soberania. É certo que os Estados se desembaraçam cada vez mais, de boa vontade, de algumas das suas prerrogativas, mas não o fazem em benefício de estruturas assentes em fundamentos democráticos. Os governos são muito menos exigentes quando se trata de conceder poderes à Organização Mundial do Comércio (OMC) do que à própria Organização das Nações Unidas ou aos tribunais internacionais de protecção dos direitos humanos.

Todas as regulamentações europeias que impedem o apoio aos serviços públicos, em benefício de instituições não democráticas e da «regulação pelo mercado», tiveram o consentimento dos governantes. Com efeito, não é à sua soberania que os Estados renunciam; o que abandonam é o poder dos povos de controlarem (pelo menos um pouco!) o mundo que está a ser construído. O questionamento do direito dos povos a disporem de si mesmos encontra­‑se, deste modo, no centro da construção europeia.

O mundo não está, todavia, condenado a nada mais ser do que um frente a frente entre Estados cada vez menos soberanos. Irromperam actores novos na cena internacional; associações, organizações não governamentais, movimentos sociais. Eles encontram cada vez mais presentes nos espaços onusianos como, por exemplo, na Subcomissão dos Direitos Humanos. «O Estado, na sua forma clássica, herdada do Iluminismo, não pode continuar a pretender ser o único espaço legítimo do debate político e da acção colectiva» [9].

No entanto, se é certo que as associações, os sindicatos e as ONG podem deste modo contribuir para resistir à globalização liberal, já a “sociedade civil”, por definição heterogénea e desigual, não poderá substituir-se aos povos, nem tem vocação para os representar. Não deve ver-se aqui uma oposição entre o mundo associativo e os Estados, representantes oficiais das nações e dos povos”, mas antes os embriões de uma necessária cooperação.


[1] A primeira Guerra do Golfo, justificada por uma anexação de território, não foi fundamentada na ingerência humanitária.
[2] A 21 de Novembro de 1995, na base norte-americana de Dayton, os presidentes sérvio, croata e bósnio assinaram um acordo que mantinha a Bósnia-Herzegovina nas fronteiras internacionalmente reconhecidas, mas ratificava a partilha desta em duas entidades: a República Sérvia e a Federação Croato-Muçulmana.
[3] Nils Andersson, “Organisation des Nations unies ou Organisation des Nations soumises?”, Contributions de l’IRDP au Forum Social Européen de Paris-Saint-Denis, Julho de 2003.
[4] Ler "Us limites du droit d'ingérence", Manière de voir, n.'45 ("La Nouvelle guerre des Baikans"), Maio-Junho de 1999.
[5] Jacques Secretan, Esquerda no poder e privatização fora da lei, Le Monde diplomatique, Dezembro de 2004.
[6] Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 26 de Agosto de 1789, artigo 3.
[7] Por exemplo, a declaração interaliados de Londres de 12 de Junho de 1941.
[8] François Crépeau, introdução a Mondialisation des échanges et fonctions de l’État, Bruylant, Bruxelas, 1997.
Nuri Albala
Le Monde diplomatique
http://infoalternativa.org/mundo/mundo187.htm

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